Embora essa prática seja
considerada abusiva já há um bom tempo pelo Código de Defesa do Consumidor (art.
39, III, da Lei 8.078/90), ela ainda é cometida com uma frequência espantosa e
costuma deixar o consumidor sem saber o que fazer. Assim resolvi fazer um post
explicando como a lei trata essa questão.
Primeira pergunta que vem
à mente: eu sou obrigado a pagar o valor do produto ou serviço fornecidos sem
meu consentimento?
Não. O art. 39,
parágrafo-único, da Lei 8.078/90, estabelece que tais produtos ou serviços são
considerados amostras grátis e, portanto, não exigem pagamento.
Tal regra existe porque a
obrigação de pagar do consumidor necessariamente decorre da existência de um
contrato, o qual não existe no caso, visto que para a celebração de um contrato
é necessária a manifestação da vontade das partes e para que ele seja válido este
consentimento deve se dar de forma livre (art. 104 e seguintes do Código Civil).
Sabendo que não existe
contrato, nem muito menos contrato válido, não existe base legal que fundamente
eventual cobrança de valores referentes a estes produtos ou serviços, de modo
que tal ato constitui nova conduta abusiva passível de reparação civil.
Ressalte-se que a lei não
limita o conceito de amostra grátis a determinados valores, de modo que ainda
que se tratasse de um carro, por exemplo, o fornecedor não poderá demandar do
consumidor o pagamento.
Aqui não cabe a ideia de
engano justificável (art. 42, parágrafo-único da Lei 8.078/90), porque tal
instituto se refere tão somente à repetição de indébito que será vista mais a frente
e nem a tese de enriquecimento sem causa (art. 884 e seguintes do Código Civil),
haja vista a existência de expressa previsão legal no sentido de punir o
fornecedor pela prática abusiva permitindo que o consumidor lesado se aproprie
gratuitamente do bem ou vantagem econômica.
Para evitar a cobrança,
ante o receio de que ela ocorra, em tese seria possível o ajuizamento de ação
de obrigação de não fazer, visando a expedição de ordem judicial proibitiva
estipulando multa em caso de descumprimento.
Porém, na prática,
dificilmente o Judiciário conseguirá dar uma resposta rápida o suficiente para
impedir que seu nome seja inscrito nos cadastros de restrição ao crédito (SPC,
SERASA, CADIN).
Assim, ressalvadas
situações específicas e também eventual hipossuficiência financeira do
consumidor, o melhor é pagar a fim de evitar a negativação e depois buscar ressarcimento.
Caso você opte por não
pagar ou não tenha tido orientações a tempo e já foi negativado, é possível
ajuizar ação de obrigação de fazer e também pleitear a respectiva indenização.
Se você optar por pagar,
após restar afastado o risco de negativação, é possível ajuizar ação de
repetição de indébito requerendo o dobro do valor que foi indevidamente cobrado
(art. 42, caput, da Lei 8.078/90).
A repetição do indébito é
uma punição da Lei do Consumidor ao fornecedor que cobra inadequadamente e consiste
na devolução em dobro do valor cobrado.
Por exemplo, a empresa Frozen envia um ar condicionado para a minha
casa sem que eu o tenha adquirido e a partir daí passam a cobrar o valor de R$ 2.000,00
(dois mil reais) a título de pagamento.
Conforme explicado acima,
inexiste contrato de compra e venda celebrado entre nós, logo este ar
condicionado é amostra grátis e qualquer cobrança a ele relativa é ilegal,
inclusive o frete (contrato acessório que acompanha o principal).
Mesmo sabendo da
ilegalidade da cobrança, diante da morosidade do Judiciário e do receio de ter
o nome negativado eu efetuo o pagamento do valor total.
Assim, aplicando a
repetição do indébito (art. 42, parágrafo-único, da Lei 8.078/90) a empresa Frozen terá que me devolver a quantia de
R$ 4.000,00 (quatro mil reais), a qual no caso buscarei no Judiciário
juntamente com a respectiva indenização por danos morais.
Há uma exceção à essa regra
que é o engano justificável, mas quando ele ocorreria?
Pois bem, um engano é um equívoco
que pode dizer respeito ao valor cobrado, ao produto ou serviço que fundamenta
a cobrança ou à pessoa do devedor.
Para que o engano seja
justificável entendo que deve haver um conjunto de circunstâncias que mesmo tomadas
as cautelas/cuidados razoavelmente esperados de uma pessoa comum (os penalistas
diriam do homem médio) não seria possível detectar o erro, tornando-o escusável
e, portanto, liberando o fornecedor da obrigação de devolver o valor em dobro.
Por exemplo, se existirem
dois irmãos gêmeos, cobrar de um o perfume que fora vendido ao outro por
contrato verbal constitui engano justificável, outro exemplo seria cobrar
parcelas de um fogão de um homônimo, cuja mãe tem o mesmo nome da mãe do
verdadeiro devedor.
Fora hipóteses como
essas, as quais precisarão ser identificadas pelo juiz caso a caso, não vislumbro
a ocorrência de engano justificável, pois simples ineficiência na gestão
documental ou dos registros da empresa ao meu ver não ensejam a caracterização
desse instituto.
O Superior Tribunal de
Justiça, porém, possui jurisprudência consolidada no sentido de que a devolução
do valor em dobro só deveria acontecer em caso de má-fé, se não ocorreria a
simples devolução do valor indevidamente pago.
Entendo que o STJ está
equivocado.
Primeiro, porque o
dispositivo nada fala sobre má-fé e não posso ver como uma interpretação
sistemática ou teleológica por melhor elaborada que seja possa alterar o texto
legal adicionando requisitos inexistentes a um instituto jurídico.
Em nosso ordenamento a
única forma legítima que o Judiciário tem para alterar a lei é declarando sua
inconstitucionalidade e ainda assim só poderá atuar como legislador negativo.
Ao acrescentar a exigência
de má-fé à repetição de indébito, o Superior Tribunal de Justiça viola o Princípio
da Legalidade e a Separação dos Poderes da República, usurpando função do
Congresso Nacional.
Ademais, em sua jurisprudência
a Corte faz a distinção entre a repetição de indébito em dobro (devolução do
valor em dobro) e a repetição de indébito simples (devolução do valor), o que
não existe no âmbito da Lei 8.078/90, pois quando a mesma fala em repetição de
indébito fala necessariamente da devolução em dobro.
Segundo, porque a
interpretação adotada não se pauta por uma exegese tecnicamente correta do
texto legal, a qual demanda que sejam identificados os comandos normativos e só
então suas exceções.
Isto é importante porque
quando uma hipótese é exceção, a ela deve ser conferida interpretação
restritiva, salvo nos casos de interpretação conforme a Constituição.
No caso em tela, o comando
normativo principal estabelece que via de regra a cobrança indevida gera a
repetição do indébito e apenas excepcionalmente isto não ocorrerá.
O Superior Tribunal de Justiça
em vez de traçar diretrizes que auxiliem os juízes a identificar a exceção (engano
justificável) acabou trazendo elemento alheio ao contexto para o bojo da
interpretação, o qual tem inclusive o condão de transformar a exceção em regra.
Isto porque a boa-fé,
enquanto estado psicológico de firme crença de estar fazendo o certo (boa-fé
subjetiva) ou enquanto dever de lealdade/probidade (boa-fé objetiva) se
presume, ao passo que a má-fé se prova.
Assim, como se não
bastasse a fragilidade do consumidor em relação ao fornecedor, ele ainda terá o
ônus de demonstrar a má-fé da parte contrária.
Se a prova já é difícil
para o consumidor em face do parco acesso a recursos que possui para
produzi-las e de seu natural desconhecimento técnico do produto ou serviço,
imagine se lhe for exigida a demonstração da má-fé.
Além disso, é sabido que boa
parte dos abusos ocorre exatamente pela falta de investimento das empresas em
capacitação de seu pessoal, gestão adequada dos processos e atendimento ao
público.
O problema é que tal
falta de investimento é proposital, haja vista serem as corporações grandes
máquinas produtoras de lucro e externalizadoras de custos, de modo que não se
faz razoável para elas investir em um serviço de ótima qualidade e reduzir a
margem de lucro, quando se pode gastar menos ao permitir que o consumidor pague
a conta do serviço mal prestado.
Na prática isso funciona
muito bem para elas porque as grandes prestadoras de serviços se aproveitam da dificuldade
no acesso à Justiça, da ineficiência e falta de proatividade dos órgãos
fiscalizadores, da morosidade do Judiciário e das condenações em valores irrisórios.
Se isso não é má-fé eu
não sei o que é, mas então me pergunto: como raios alguém conseguiria
praticamente elaborar um estudo sociológico dentro do processo para demonstrar
que aquela ligação para o SAC caiu de propósito ou que aquele produto não
pedido foi enviado para sua casa pra ver se cola?
O Superior Tribunal de Justiça
não entendeu o espírito da Lei 8.078/90 que pretende punir não apenas quem age
com a intenção de fazer o mal, mas também aquele que por desídia, falta de
diligência ou mesmo de habilidade prejudica o consumidor praticando contra ele atos
abusivos.
Enviar um produto não
pedido, prestar um serviço não contratado e ainda cobrar por eles se utilizando
da ameaça de inclusão em órgãos restritivos é quase uma extorsão, e por isso estes
são atos condenados e punidos severamente pelo Legislador.
Assim, aplicar o
entendimento do STJ significa na prática esvaziar o instituto jurídico da
repetição do indébito chancelando as práticas nefastas de uma espécie
abominável de capitalismo.
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