domingo, 27 de novembro de 2016

Não sou obrigado!



(O caso do estagiário obrigado a compensar a carga horária reduzida por lei)

Olá, JusAmiguinhos! A história de hoje é baseada em fatos reais e diz respeito a um estagiário que era obrigado a compensar as horas correspondentes à redução de carga horária nos dias de avaliações. 

Para quem não sabe, de acordo com o art. 10, §2º, da Lei 11.788/08 (Lei do Estágio), quando o estagiário estiver sendo submetido às verificações de aprendizagem da instituição de ensino a que pertence, ele tem direito a que sua carga horária seja reduzida pelo menos à metade.

Na prática, se o estágio tem uma carga horária de 4 horas por dia, o estagiário cumprirá apenas 2 horas para que possa se preparar adequadamente para a avaliação.

Só que na história de hoje, nosso estagiário, o Jonas, quando tentou utilizar a referida redução foi informado por seu supervisor, Gerson, que poderia fazê-lo, mas que precisaria compensar as referidas horas em outro momento do mesmo mês.

É importante destacar que Jonas cursava Direito e estagiava no Ministério Público, onde Gerson era chefe de departamento.

Questionando o supervisor sobre eventual violação do princípio da legalidade, Jonas recebeu de Gerson a resposta de que tal prática não era proibida por lei e que, portanto, aquilo que não é proibido é permitido.

Jonas já bastante traumatizado com o Curso de Direito preferiu aplicar a tática do aceita que dói menos e acabou deixando por isso mesmo.

Hoje, nós vamos analisar se o entendimento de Gerson está correto ou não.

A possibilidade de compensação de horas no contrato de estágio

O contrato de estágio é diferente do contrato de emprego, pois a finalidade daquele é educacional (art. 1º da Lei 11.788/08), embora em muitos lugares os estagiários sejam utilizados apenas como mão de obra barata para reduzir custos operacionais.

Enquanto no contrato de emprego a lei permite que o funcionário realize horas extras e a empresa negocie esquemas de compensação, seja com remuneração em dinheiro, seja com folgas, o mesmo não ocorre quando se trata de estágio.

Isso porque o art. 10 da Lei 11.788/08 estabelece apenas dois tipos de jornada para os estagiários: uma que contempla 4 horas de trabalho por dia e 20 horas semanais e outra que chega a 6 horas de trabalho por dia e 30 horas semanais.

Supondo que o estagiário esteja sujeito à primeira hipótese e tenha uma semana inteira de provas, ele terá um total de 10 horas para compensar ao final da semana.

Só que em qualquer outra semana do mesmo mês ele precisará trabalhar 4 horas por dia e 20 horas semanais, de modo que o acréscimo de quaisquer horas fará com que ele ultrapasse o limite da jornada máxima legalmente prevista.

É importante lembrar que não dá pra ficar trocando de jornada, a qual tem que ser estabelecida na constituição do vínculo do estágio e deve constar no termo de compromisso (art. 3º, II, da Lei 11.788/08).

Ao fim e ao cabo, o estagiário fica impossibilitado de compensar, porque se o fizer excederá a carga horária máxima prevista em lei e com isso a relação de estágio se converterá em relação de emprego, obrigando o empregador a arcar com as verbas trabalhistas e previdenciárias, nos termos do art. 15 da Lei 11.788/08.

Mas a lei não diz que a compensação deve se dar conforme o termo de compromisso? Esse termo não poderia prever a hipótese de compensação?

Vejamos o que diz o texto:

Art. 10 [...]
§ 2º  Se a instituição de ensino adotar verificações de aprendizagem periódicas ou finais, nos períodos de avaliação, a carga horária do estágio será reduzida pelo menos à metade, segundo estipulado no termo de compromisso, para garantir o bom desempenho do estudante.

Ao afirmar que a redução se dará segundo o estipulado no termo de compromisso, a lei não está dando uma carta branca para que este viole as disposições da própria lei, pois isso seria uma incoerência.

O dispositivo é aberto de propósito para alcançar situações diversas, por exemplo, o caso das instituições que fazem semanas de provas e aquelas que deixem a critério de cada professor a fixação da data.

O termo poderá prever que o aluno comprove a feitura da avaliação com um documento assinado pelo professor ou pela universidade ou algo nesse sentido.

A ideia não é permitir a compensação, mas operacionalizar a redução no caso concreto.

Alguns textos legais geram dúvidas por permitir mais de uma interpretação, como no caso acima, entretanto quando se conhece os princípios envolvidos é fácil chegar à conclusão correta.

No Direito do Trabalho, existe o chamado princípio da proteção que dentre outras coisas confere ao trabalhador o direito de que as leis, contratos e instrumentos coletivos recebam a interpretação que lhe for mais favorável.

É o in dubio pro operario, ou seja, na dúvida vale a interpretação mais favorável ao trabalhador.

No caso, a interpretação mais favorável ao trabalhador é aquela segundo a qual o estagiário tem direito à redução da carga horária sem que o termo possa prever compensação.

Em resumo, não é possível compensação de horas em se tratando de contrato de estágio.

A diferença entre a aplicação do princípio da legalidade para o cidadão e para o Estado

É interessante a afirmação de Gerson: aquilo que não é proibido é permitido.

Ele na verdade está reproduzindo o pensamento de um clássico do Direito, Hans Kelsen, que afirma que tudo aquilo que não é obrigatório e nem proibido é permitido (princípio de clausura).

Essa afirmação pode até ser considerada parcialmente correta em se tratando de particulares, mas está claramente equivocada em se tratando do Poder Público.

Isso porque o princípio da legalidade opera de formas diferentes em relação às pessoas e ao Estado.

O art. 5º, II, da Constituição Federal ao enunciar o princípio da legalidade afirma a célebre frase do meme: “Eu não sou obrigado”.

Isso porque os direitos fundamentais foram criados para proteger o cidadão do Estado, de modo que o cidadão pode fazer tudo que não for proibido por lei, em outras palavras, você não é obrigado, a não ser por força de lei!

Só que se a ideia é proteger o cidadão, o raciocínio se dá de maneira inversa em relação ao Estado, ou seja, tudo o que não for permitido por lei o Estado é proibido de fazer.

Isso tanto é verdade que o princípio da legalidade aplicada à Administração Pública não está prevista no art. 5º, mas sim no art. 37 da Constituição Federal.

Nem precisa se aprofundar, basta ler qualquer manual de Direito Administrativo e você compreenderá que o Estado não pode fazer o que bem quiser, mas apenas aquilo que a lei lhe permitir.

Na prática, o raciocínio de Gerson está errado, pois tenta aplicar um Princípio de Direito Privado no Direito Público.

O Estado não pode exigir a compensação de carga horária porque a lei não permite.

Sendo um órgão público, Jonas tem direito a ter o vínculo empregatício reconhecido?

Como já ficou demonstrado a compensação de carga horária é ilegal e sua prática converte a relação de estágio em relação de emprego, no entanto como se trata de ente público seria indispensável o concurso (art. 37, II, da Constituição Federal) para que Jonas fosse admitido.

Essa exigência constitucional impede que a relação de emprego seja reconhecida (art. 37, §2º, da Constituição Federal) e limita bastante os direitos a que Jonas faz jus.

De acordo com o Supremo Tribunal Federal (RE 705.140 RS) esse tipo de contratação ilegítima gera direito apenas à percepção dos salários referentes ao período trabalhado e aos depósitos do FGTS.

Para ter esses direitos reconhecidos Jonas deverá ajuizar uma reclamação trabalhista na Justiça do Trabalho.

Considerações finais

Pois é JusAmiguinhos! A história pode ser fictícia, mas os casos são bem reais e o desrespeito às leis perpetrado pelo próprio Estado é muito mais comum do que deveria.

Fiquem espertos e lembrem-se: nós não somos obrigados!

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