domingo, 4 de dezembro de 2016

Até que ponto o Projeto de Lei aprovado na Câmara realmente prejudica magistrados e promotores sérios?



JusAmiguinhos, será se apoiar o destaque que cria crimes de responsabilidade para juízes e promotores realmente é ir contra a lava jato?

Vi muitas reações diferentes sobre o assunto, mas poucas que realmente sopesassem os dois lados.

Em tempos de redes sociais, tem muita hashtag e pouco argumento, muito grito de guerra e pouca discussão técnica.

Isso é preocupante.

Eu não vou falar sobre as 10 medidas em si, até porque a maioria delas já se foi, mas pretendo tratar hoje especificamente do destaque aprovado pela Câmara e que levou a mídia à loucura por esses dias.

Breve retrospectiva: O que são as 10 medidas contra a corrupção

São algumas propostas legislativas apresentadas pelo Ministério Público Federal à população, que os subscreveu dando início a uma proposta de lei de iniciativa popular.

Esse projeto, o PL 4.850/2016, foi levado à Câmara e quase totalmente modificado lá.

Na madrugada do dia 30 de novembro, o plenário da Câmara aprovou o texto com várias modificações que revoltaram alguns segmentos da sociedade.

Dentre elas, foi dada ênfase ao destaque que cria hipóteses de punição para juízes e promotores por abuso de autoridade.

Qual o motivo da reação popular?

A população, de modo geral, não gostou nem um pouco do que fez o Legislativo.

Primeiro, porque foi feito de madrugada, o que soa muito sorrateiro aos ouvidos de um povo que tem mais medo de água quente do que gato escaldado.

Segundo, porque foi feito enquanto a nação estava de luto pela tragédia que aconteceu com o time da Chapecoense.

Terceiro, porque a mídia reagiu fortemente afirmando que o ato constitui uma nítida tentativa de vingança do Congresso contra a força tarefa da lava jato.

Quarto, porque Renan Calheiros apoia a medida.

Quinto, porque boa parte dos que votaram a favor da medida se não são investigados estão bem próximos de ser.

O que diz o destaque aprovado?

Esse é o primeiro ponto! A mídia condena o destaque, o aponta como ato de vingança e afirma convictamente que tais dispositivos têm como objetivo parar a lava jato.

O que você não vê é discussão sobre o conteúdo da proposta.

O texto da lei é certamente mais importante que a vontade do Legislador, visto que uma vez em vigor é ele que será objetivamente interpretado e aplicado (ou seja, andará com as próprias pernas).

A maioria dos nossos políticos é corrupta, vil e se guia por interesses próprios. Mas se vamos considerar esses fatos, não poderíamos desqualificar todo e qualquer texto por eles produzido?

Isso significa que não podemos apedrejar o projeto antes de realmente analisar o texto.

Vou comentar apenas a parte dos juízes, visto que o tratamento dado a juízes e promotores é bem parecido.

O que o destaque estabelece para os juízes?

Vamos ao que diz o texto...

“Art. 8º Constitui crime de abuso de autoridade dos magistrados:”

Os crimes de abusos de autoridade hoje são previstos na Lei 4.898/65, cuja redação além de ultrapassada ainda é extremamente aberta, o que dificulta amoldar determinadas condutas ao tipo penal.

É importante diferenciar o abuso de autoridade do crime de responsabilidade.

O primeiro é crime comum e vai a julgamento no Judiciário e o segundo é infração político-administrativa que pode ir a Julgamento no Legislativo, conforme o cargo que o autor ocupe (como ocorreu com Dilma).

Dito isso, fica claro que ao prever crimes de abuso de autoridade o Legislativo não se torna juiz sobre o Judiciário ou sobre o Ministério Público.

Uma coisa é uma coisa e outra coisa é outra coisa.

I - proferir julgamento, quando, por lei, seja impedido

O juiz impedido é aquele que, nos termos do art. 144 do Novo Código de Processo Civil, tenha vinculação objetiva com o processo, o que inclui o juiz que for parte no processo ou for parente de uma delas, que oficiou como perito ou funcionou como membro do Ministério Público, testemunha ou mandatário de uma das partes, que conheceu o processo em outro grau de jurisdição, tendo proferido decisão, dentre outras situações.

Se o juiz sabe que está impedido e mesmo assim julga, isso mostra um caso claro de abuso de autoridade.

Ele abusa de sua posição para obter vantagem para ele ou outra pessoa de modo ilegal e inconstitucional.

Assim sendo, caracterizar essa conduta como crime me parece perfeitamente razoável.

II - atuar, no exercício de sua jurisdição, com motivação político-partidária

Por semelhante modo, nesse caso, o juiz se utiliza de sua posição para defender bandeiras políticas próprias em desprezo à Jurisdição e à técnica jurídica.

O juiz deve saber que seu dever é atuar de modo objetivo e técnico, conforme os ditames do ordenamento jurídico.

Se ele leva política para dentro do Tribunal e tenta usurpar o papel dos parlamentares, exercendo atividade legislativa sem a legitimidade do voto, certamente deve ser punido na esfera criminal.

“III - ser patentemente desidioso no cumprimento dos deveres do cargo”

A meu ver é excessivo considerar uma atuação desidiosa como crime, afinal na maioria das profissões quem não trabalha direito ou é suspenso sem remuneração ou demitido.

Aplicando o mesmo raciocínio aos juízes, tem-se que a melhor punição é administrativa e não penal.

“IV - proceder de modo incompatível com a honra, dignidade e decoro de suas funções”

Semelhantemente ao que acontece com os parlamentares, faltar com o decoro poderia ensejar advertência, suspensão e até perda do cargo, mas daí a encarcerar alguém por se portar de modo inadequado é demais.

“V - exercer, ainda que em disponibilidade, outro cargo ou função, salvo de magistério”

Outros servidores públicos que incorrem na mesma ilicitude podem optar por um dos cargos.

No caso do juiz até daria pra entender um maior rigor que, por exemplo, ocasionasse a perda do cargo, mas tornar isso um crime me parece demais.

“VI - exercer atividade empresarial ou participar de sociedade empresária, inclusive de economia mista, exceto como acionista ou quotista”

O raciocínio é idêntico ao do inciso anterior.

“VII - exercer cargo de direção ou técnico de sociedade simples, associação ou fundação, de qualquer natureza ou finalidade, salvo de associação de classe e sem remuneração”

A mesma coisa dos incisos antecedentes.

VIII - receber, a qualquer título ou pretexto, custas ou participação em processo

Quem se vale da posição para se locupletar ilicitamente comete crime e deve ser punido.

IX - expressar, por qualquer meio de comunicação, opinião sobre processo pendente de julgamento, seu ou de outrem, ou juízo depreciativo sobre despachos, votos ou sentenças de órgãos judiciais, ressalvada a crítica nos autos e em obras técnicas ou no exercício do magistério”

Em tempos de espetacularização do Direito este dispositivo é providencial, no entanto a meu ver o texto é excessivamente restritivo à liberdade de expressão.

O juiz como qualquer cidadão deve poder comentar decisões judicias, afinal o que as legitima é exatamente a precisão argumentativa.

Tais comentários podem se dar por quaisquer meios que o cidadão julgar interessantes e não só no exercício do magistério ou em obras técnicas.

Do ponto de vista ético, não cabe ao juiz buscar os holofotes, mas aprovando-se isso ele sequer poderá utilizar as redes sociais ou ter um blog (afinal, nesses meios comentamos coisas com as quais convivemos e o juiz convive com decisões judiciais).

Concordo com a restrição a comentários sobre processos pendentes de julgamento que estejam na mão do próprio juiz, mas não das decisões judiciais de um modo geral.

“§ 1º Aos crimes a que se refere este artigo serão cominadas as penas de reclusão de seis meses a dois anos e multa”

O aumento da pena é importantíssimo, porque o abuso de autoridade é considerado pelo Superior Tribunal de Justiça como crime de menor potencial ofensivo (art. 61 da Lei 9.099/95), ou seja, vai para o Juizado Especial Criminal e é passível de um número considerável de benefícios.

Com esse dispositivo o crime passa a ser de médio potencial ofensivo e, portanto, tem maior efeito repressivo.

“§ 2º Observadas as regras de competência previstas na Constituição Federal, qualquer cidadão pode representar contra membro da magistratura perante o tribunal ao qual está subordinado o magistrado”

Esse dispositivo amplia e muito a fiscalização que a sociedade pode exercer sobre o Judiciário.

Qualquer cidadão poderá apontar as ilegalidades cometidas por um juiz.

Com isso a toga deixa de ser um manto impenetrável e os profissionais do Direito passarão a atuar com mais responsabilidade.

“§ 3° Se a representação for contra juiz do trabalho ou juiz militar federal, a denúncia será encaminhada ao respectivo Tribunal Regional Federal; se for contra juiz militar estadual, ao respectivo Tribunal de Justiça”

Esse parágrafo apenas explica quem é competente para julgar cada caso e, como observado, os juízes estarão sujeitos a outros juízes e não ao Legislativo.

“§    A  representação,  assinada  pelo  representante com a firma reconhecida, deve ser acompanhada dos documentos que  a  comprovem  ou  da  declaração  de  impossibilidade  de apresentá-los,  com  a  indicação  do  local  onde  possam  ser encontrados”

Esse dispositivo expressa duas coisas: uma que a representação não pode ser irresponsável, ou seja, precisa de provas e a outra que também não pode ser anônima, afinal quem tem certeza do que está afirmando não deve se esconder.

“§ 5° Os crimes desta Lei serão processados por ação penal pública, podendo o lesado pelos atos abusivos oferecer queixa subsidiária, se o Ministério Público não intentar a ação pública no prazo legal”

Aqui também está um mecanismo excelente para evitar eventuais corporativismos do Judiciário e do Ministério Público.

Se o MP não der seguimento no prazo, a própria pessoa poderá fazê-lo.

“§ 6° A Ordem dos Advogados do Brasil e organizações da sociedade civil constituídas há mais de um ano e que contenham em seus estatutos a finalidade de defesa de direitos humanos ou liberdades civis serão igualmente legitimadas a oferecer a queixa subsidiária”

Aqui, há uma ampliação do rol de pessoas que pode fazer a representação, o que melhora e muito a questão fiscalizatória.

Até que ponto a aprovação do Projeto com este destaque realmente prejudica os juízes e promotores sérios?

A meu ver o erro moral da Câmara foi esse tom de retaliação à lava jato e o erro político a falta de compreensão do momento que vivemos, afinal de contas com o povo saturado de corrupção e o país em luto, evidentemente soou como uma traição parlamentar.

Do ponto de vista jurídico, o equívoco é prever punição penal em muitos casos que as punições administrativas já são suficientes.

Entretanto, penso que as partes que sublinhei constituem ilícitos graves a ponto de serem considerados crimes.

Supor que juízes e promotores estão acima da lei é reforçar um privilégio odioso que vai contra o Estado Democrático de Direito.

Um juiz ou promotor sério não emitirá sentença ou parecer se estiver impedido, não atuará por motivação político-partidária, não aceitará receber nenhum tipo de participação financeira na causa e muito menos ficará espetacularizando o processo.

Concordo que o projeto da forma que está pode dificultar a atuação de juízes e promotores e isso não porque os ilícitos previstos no texto sejam absurdos, mas porque em muitos casos bastaria a suspensão sem remuneração ou a perda do cargo.

Temos que lembrar que o encarceramento tem que ser sempre o último recurso.

Importa destacar também que hoje as punições máximas que um juiz ou promotor recebem é serem aposentados compulsoriamente.

Isso lá é punição? Pra mim parar de trabalhar e continuar recebendo parece mais um prêmio...

Juízes e promotores precisam sim de blindagens contra quem está no poder para poderem exercer seus papéis de modo imparcial, mas daí a considerá-los intocáveis é demais.

Temos que concordar que no atual contexto normativo as punições de juízes e promotores são piadas ridículas e uma afronta ao povo brasileiro.

Por isso, embora o texto do destaque precise de modificações, discutir os crimes de abuso de autoridade de juízes e promotores é importantíssimo.

Assim sendo, acredito que depois de suprimir essas partes que geram punição penal onde ela não cabe o texto do destaque deveria realmente se tornar lei.

Por que Sérgio Moro e os procuradores estão tão preocupados?

A maior preocupação deles certamente é o dispositivo que trata de utilizar meios de comunicação para comentar decisões.  

Porque a lava jato tem utilizado largamente a mídia como instrumento de pressão, violando a presunção de inocência ao condenar publicamente as pessoas antes do devido processo legal.

Quem é investigado na cabeça do cidadão comum já é culpado.

E se é assim, pra que temos juízes, promotores e processo? Se os meios de comunicação são promotores, juízes e carrascos?

A pressão midiática e o uso abusivo e inconstitucional de prisões cautelares têm tornado a delação premiada a rainha das provas.

Nesse contexto, até apresentação de power point é utilizada como modo de formar uma convicção pública de culpa, antes mesmo do início formal do processo.

Só a título de comentário, não falo isso pra defender Lula, inclusive porque acho que ele é culpado, mas culpado ou não, garantias são garantias.

Se eu violo a lei pra punir alguém que violou a lei, eu não passo de um hipócrita!

Investigar? Sim! Punir? Sim! Prender? Com certeza!

Mas tudo respeitando as balizas legais ou voltaremos à barbárie.

É triste, mas opiniões pessoais, decisionismos, solipsismos, ideologias políticas e idiossincrasias tem tomado o lugar das teses jurídicas e da técnica do Direito.

A cada dia, a lava jato tem parecido menos um conjunto de procedimentos judiciais para se tornar uma espécie de cruzada política.

Mais uma vez com isso não estou defendendo o PT, o qual eu também julgo culpado pelo deplorável estado em que se encontra o país.

Meu ponto é que a força tarefa está preocupada porque sabe que tem agido à margem da Constituição desde o começo.

Tem cabimento a ameaça de renúncia coletiva dos procuradores?

Em resposta à aprovação do texto base na Câmara dos Deputados, os procuradores da força tarefa, como tentativa de pressionar o Legislativo, ameaçaram renunciar coletivamente às suas posições na operação lava jato.

Com esse discurso e a cobertura da mídia realmente pareceu para toda a sociedade que se o projeto passar a lava jato para.

Mas, será mesmo?

Antes de tudo precisamos lembrar que os procuradores possuem uma vinculação funcional e não pessoal com o caso.

Isso significa que foram designados para isso e não podem de acordo com as normas internas do Ministério Público abandonar os casos por qualquer motivo.

Com motivo ou sem motivo, eventual renúncia desses procuradores implicaria designação de outros procuradores para a tarefa.

Tal reação demonstra o estrelismo de pensar que eles são mais competentes que outros procuradores ou que a lava jato só anda por causa deles.

Há muito o Ministério Público não tem se portado como Ministério Público dentro da lava jato.

O MP não é partido e nem organização da sociedade civil para fazer proselitismo ou lobby e seus membros não podem se utilizar do cargo para isso.

O elemento midiático da lava jato já retirou sua precisão e rigor técnico faz tempo e o pior que isso aconteceu com os aplausos de muitos juristas que comemoram a violação dos direitos e garantias fundamentais.

Para evitar a forte tentação da fama, da ostentação e do ímpeto de agradar a opinião pública profissionais do Direito deveriam se manter afastados das câmeras o máximo possível, sob pena de se desprenderem da técnica para decidir segundo os gritos da plateia.

Senhores, o Judiciário não é o programa da Angélica em que vence quem receber mais aplausos ou quem gritar mais alto.

Quem estuda processo sabe que todo procedimento está ligado a determinadas garantias constitucionais e despeitar o devido processo é rasgar a Constituição.

A presunção de inocência foi sovada inúmeras vezes com a decretação de prisões cautelares cujo único motivo real era pressionar outros envolvidos a realizar delação premiada.

O que seria isso? Preguiça de investigar? Instrumentalização do ser humano? Os fins justificando os meios?

Tudo isso e muito mais! Na verdade, há um profundo desprezo pela ordem jurídica de quem aceita fazer as coisas dessa forma.

A corrupção precisa ser combatida de modo severo no Brasil, mas um erro não justifica o outro.

Se fragilizamos as garantias constitucionais agora, não podemos reclamar do futuro que nos aguarda.

Processo penal nunca pode ser pensado só pro outro e nem partir da presunção de culpa.

Portanto, a reação dos procuradores é absolutamente descabida.

Isso porque é incompatível com a postura institucional que o Ministério Público deve manter perante atos dos Poderes da República e porque não passa de uma atitude de autopreservação, na medida em que os procuradores sabem estar atuando de modo parcial e inadequado.

Conclusão

Nossos políticos estão atuando de modo reprovável e à margem da Constituição? Sim!

Infelizmente, os promotores e os juízes da lava jato também!

Mas sabe quem é o grande culpado disso tudo? O povo!

Porque votamos nos bandidos que lá estão, nos deixamos manipular pela mídia, incentivamos a ostentação judicial, aplaudimos justiceiros e violações à Constituição e ainda nos digladiamos entre nós mesmo quando deveríamos encontrar um lugar comum para solucionar os problemas da nossa nação.

Precisamos reformar o Brasil, mas pra isso é imprescindível reformar o brasileiro.

Então comece por você!

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