segunda-feira, 20 de fevereiro de 2017

O cidadão de bem e o vagabundo



Esses dias tenho ouvido muitos discursos na mídia e nas redes sociais e boa parte deles utiliza duas figuras: o cidadão de bem e o vagabundo.

O cidadão de bem é tido como modelo: homem, pai de família, sai para trabalhar de manhã cedo, pega no pesado, volta pra casa cansado, paga suas contas, segue a lei, não comete crimes, educa seus filhos.

O vagabundo, como o nome já diz, passa o dia sem fazer nada, vive às custas dos outros, comete crimes, trapaceia, engana, rouba, ri na cara da lei, violenta a família do cidadão de bem e ainda é protegido pelos direitos humanos.

Pergunto: com qual das duas figuras você se identifica?

Talvez, você seja mulher ou jovem, talvez você estude em vez de trabalhar, mas guardadas as proporções você certamente se identificou com o cidadão de bem.

Claro! Nós sempre temos uma boa visão a nosso respeito. Achamos que somos os reis da cocada preta e temos a mais plena certeza de que somos os paladinos da moral e da justiça, afinal, como diria Jean Paul Sartre, “o inferno são os outros”.

Você é mesmo um cidadão de bem?

Segundo o IBGE, em 2012, 37,3% dos lares brasileiros eram chefiados por mulheres que se desdobravam entre trabalhar fora para sustentar a casa e realizar as atividades domésticas.

Você acha que é preciso ter genitais masculinos pra ser um cidadão de bem? Diria que essas mulheres não cuidam de suas famílias? Claro que não!

Sabia que hoje com a crise o Brasil atingiu a marca de 12 milhões de desempregados?

A pessoa que perdeu o emprego ou que não consegue se inserir no mercado de trabalho é vagabunda?

Você que está lendo esse texto e foi demitido por esses meses, você que tem procurado uma vaga de emprego, mas não consegue porque as qualificações exigidas são muito altas, você que não tem experiência, mas vê as empresas exigindo isso em todos os classificados que lê. Vocês são vagabundos?

Perder o emprego ou não conseguir um, no atual contexto, te faz vagabundo? Eu creio que não!

Sabia que a inadimplência aumentou vertiginosamente em 2016 e segue subindo pelo menos até o final do ano?

Você que planejou mal o orçamento e foi pego pela inflação. Você é vagabundo? Você que preferiu comprar a comida dos filhos a pagar a fatura do cartão e foi negativado. Você é vagabundo? Você que perdeu o carro porque não conseguiu mais pagar as prestações. Você é vagabundo?

Eu tenho certeza que não!

Você que se julga cidadão de bem. Você cumpre a lei?

Como um conhecedor da lei, eu vou te mostrar que não em 5 pontos:

1) Trânsito: você não usa cinto de segurança (art. 65 do Código de Trânsito), não usa capacete (art. 244, I, do Código de Trânsito), atravessa fora da faixa de pedestre (art. 254, V, do Código de Trânsito), usa o celular enquanto dirige (art. 252, VI, do Código de Trânsito) e ainda entrega o carro na mão de quem não é habilitado para “ensinar” a dirigir (art. 310 do Código de Trânsito).

2) Família: você bate nos seus filhos (art. 18-B do Estatuto da Criança e do Adolescente), xinga sua mulher (art. 7º, V, da Lei Maria da Penha) e ainda trai (art. 1.566 do Código Civil).

3) Direitos autorais: tira xerox de livros inteiros, compra CD pirata, crackeia o sistema operacional do computador e baixa filmes da internet (art. 184 do Código Penal).

4) Ambiente: queima o lixo do quintal (art. 54 da Lei de Crimes Ambientais), maltrata animais (art. 32 da Lei de Crimes Ambientais), solta balões no São João (art. 42 da Lei de Crimes Ambientais).

5) Penal: faz sexo sem camisinha sabendo que tem DST (art. 130 do Código Penal), deixa os filhos sem nenhum adulto em casa pra ir trabalhar (art. 133 do Código Penal), acusa pessoas de crimes nas redes sociais sem nem verificar a veracidade da afirmação (art. ), viola a correspondência dos familiares (art. 138 do Código Penal), fica com o celular que achou na rua (art. 169, II, do Código Penal), compra mais barato mesmo sabendo que vem de roubo (art. 180 do Código Penal) e registra filho de outra pessoa como se fosse seu (art. 242 do Código Penal).

Aí, você pode dizer: Ah, mas eu não cometo crimes!

Não? Pois, fique sabendo que todas as condutas dos itens 3, 4 e 5 são crimes e quem comete crime é bandido, não cidadão de bem.

Percebeu como você não é exatamente o cidadão modelo que imaginava? Percebeu que se fosse pra levar em consideração os mesmos parâmetros que você usa pra classificar alguém como cidadão de bem você não se encaixaria?

Você poderia dizer que nunca roubou, mas roubar em sentido comum não é pegar algo de alguém? A razão da sua repulsa pelo roubo não existe justamente porque estão tomando de graça algo de alguém que trabalhou por aquilo?

Pois é! A produtora musical e cinematográfica, os diretores, editores, revisores, técnicos de som e áudio, os dubladores, os atores, diretores, roteiristas, enfim, todos eles trabalharam e quando você compra algo pirata ou baixa da internet sem pagar, o que você acha que está fazendo?

Quando você leva aquele clipe, aquela caneta, aquele grampeador do serviço pra casa, do que você chama isso? Esquecimento? Não!

Isso é subtrair coisa alheia móvel e se chama furto! Art. 155 do Código Penal!

Mas aí você poderia dizer que não teve intenção de furtar (no Direito nós chamamos isso de ausência de dolo específico) ou que é só uma caneta e nem vai fazer falta (no Direito isso é princípio da insignificância).

Só que esses argumentos, meu caro, você não pode usar, porque eles fazem parte dos direitos humanos e direitos humanos só se aplicam aos cidadãos de bem, o que já ficou bem comprovado até aqui que você não é.

Você não é cidadão de bem porque você não trabalha, não paga suas contas, desrespeita a lei e comete crimes.

Mas se um dia você for preso em flagrante a primeira coisa que você vai fazer é procurar um advogado para fazer valer todos os seu direitos humanos e garantias processuais, afinal pimenta nos olhos dos outros é refresco!

Talvez você seja um vagabundo

Vamos então verificar se você é um vagabundo?

Você fura a fila do cinema, você cola/pesca em provas da faculdade, leva atestado para conseguir folga no serviço mesmo sem estar doente, bate o ponto do outro com dedo de silicone, falsifica assinatura de quem não estava presente, não devolve troco errado, finge ainda estar doente pra continuar recebendo auxílio-doença do INSS, pega certidão falsa em sindicato de agricultores/pescadores ou em prefeituras do interior para se aposentar e por aí vai.

Tudo isso é trapacear, enganar, se aproveitar e viver às custas dos outros. Tudo isso é modus operandi de vagabundo e vagabundo, como é bandido, tem que ser enjaulado e afastado de tudo e de todos.

Aliás, bandido tem é que morrer, porque bandido bom é bandido morto!

Se é esse o caso, então você deveria se matar, logo após a leitura deste texto, porque se você acompanhou o raciocínio e respondeu de modo sincero às perguntas certamente chegou à conclusão de que dentro dos parâmetros apresentados você também é um vagabundo.

Sabe? Eu acredito firmemente que as pessoas que invadiram lojas no Espírito Santo certamente se achavam cidadãs de bem, mas como diz o ditado: a ocasião é que faz o ladrão. E realmente fez! Muitos ladrões!

Chega de hipocrisia

Eu não quero aqui me colocar acima de tudo isso, mas alguém precisa denunciar a hipocrisia desses discursos.

Cidadão de bem e vagabundo são estereótipos que permeiam o imaginário popular e o senso comum, mas que a rigor não correspondem a uma realidade factível, porque nenhum de nós se amolda a eles por completo.

O que quero dizer é que não podemos partir do pressuposto de que alguém é mal e por essa ou aquela circunstância ou característica previamente puni-lo.

Cada um de nós faz o mal e faz o bem todos os dias.

As pessoas não devem ser castigadas por quem são, mas pelo que fizeram de errado e pra isso é preciso que haja um processo de apuração, um julgamento, a possibilidade de ser ouvido, as garantias processuais e os direitos humanos.

O clamor popular e a sede de vingança não podem promover a justiça porque não atuam de modo objetivo, mas são guiados por paixões e fortes emoções.

Direitos humanos são para todos os seres humanos, quer sejam cidadãos de bem, quer sejam vagabundos, porque aquele que firmado em sua própria hipocrisia se acha no direito de condenar outro naquilo que ele mesmo pratica não é cidadão de bem, mas vagabundo.

O Estado enquanto ajuntamento dos cidadãos de bem não pode usar da mesma truculência e ética dos vagabundos ou será ele próprio um vagabundo.

Mas a verdade é que na maioria das vezes ele usa e isso porque nós brasileiros de um modo geral estamos mais pra vagabundos do que pra cidadãos de bem, posto que agimos como vagabundos, pensamos como vagabundos e de 2 em 2 anos colocamos vagabundos no poder.

Queremos mudar o Brasil mudando os outros, mas precisamos fazer a mea culpa e perceber que quem primeiro tem que mudar somos nós mesmos.

Como diria Jesus, não adianta apontar o argueiro no olho do teu irmão se você tem uma trave no seu.

Vamos mudar o Brasil? Comecemos pelo brasileiro!

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