sexta-feira, 2 de dezembro de 2016

Aborto continua sendo crime e argumentos de Barroso não são plausíveis



JusAmiguinhos, terça-feira, dia 29/11, saiu uma polêmica decisão do Supremo Tribunal Federal “descriminalizando” o aborto até o 3º mês de gestação ou pelo menos isso foi o que a mídia veiculou.

Hoje, vamos verificar o que de fato aconteceu e falar um pouco sobre o tema.

O aborto até o 3º mês realmente foi descriminalizado?

Não. Acompanhe o meu raciocínio...

O Supremo Tribunal Federal foi consagrado pela Constituição Federal como seu intérprete e guardião.

Isso significa que cabe ao Supremo sanar as dúvidas e divergências interpretativas do texto constitucional, além de zelar pelo seu efetivo cumprimento.

Em sua atuação, ele trabalha de duas formas: controle concentrado e controle difuso.

O controle concentrado permite que algumas pessoas ou entidades previamente elencadas (art. 103 da Constituição Federal) possam propor ações para questionar a constitucionalidade de dispositivos legais.

Quando essas entidades ajuízam Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI), Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC) ou Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF), a decisão tomada pelo Supremo naquele caso passa a valer para todos os casos semelhantes automaticamente, ou seja, torna-se vinculante.

Se um juiz de 1º grau ou desembargador decidir diferente, o advogado da parte prejudicada pode ajuizar uma reclamação no Supremo e este cassará a decisão, fazendo valer o entendimento por ele fixado.
 
O controle difuso pode ocorrer em qualquer caso desde que haja violação direta do texto constitucional.

Nessas hipóteses, havendo o preenchimento dos requisitos legais, é possível levar o caso ao Supremo por meio de um Recurso Extraordinário ou de um remédio constitucional, como o Habeas Corpus.

Aquilo que é decidido em controle difuso só vale para aquele caso específico, a menos que o Senado por meio de Decreto Legislativo decida suspender a eficácia da lei declarada inconstitucional (art. 52, X, da Constituição Federal).

O caso que estamos analisando trata de um Habeas Corpus (HC 124.306 RJ) que chegou ao Supremo em sede de controle difuso, logo a decisão vale apenas para o caso concreto e os demais juízes não são obrigados a seguir o mesmo entendimento.

Mas essa decisão pode ser considerada uma tendência?

Não dá pra saber.

O STF é composto de 11 ministros e trabalha subdividido em duas turmas, cada uma com 5 ministros, sendo que o Presidente não conta, porque de regra ele não vota.

Essa decisão foi tomada pela 1ª turma, sendo que 3 dos 5 ministros fundamentaram seus votos com base na inconstitucionalidade dos arts. 124 a 126 do Código Penal que tratam do crime de aborto.

Isso significa que embora todos tenham votado por colocar os réus em liberdade apenas 3, Barroso, Fachin e Weber, entendem que o aborto é inconstitucional, o que pode ser considerado um placar apertado.

O tema é muito controverso e é difícil saber que posição sairia vencedora se fosse levado a plenário em sede de controle concentrado.

Mas se perguntarem, acredito que há uma tendência nesse sentido por dois motivos: o primeiro é o que os Cursos de Direito no Brasil costumam se posicionar mais à esquerda e para essa linha de pensamento o direito ao aborto é considerado um progresso e o segundo é que o Supremo já está pegando o gosto de legislar no lugar do Congresso Nacional.

E o que estava sendo discutido nesse caso específico?

No caso específico, discute-se a situação de vários integrantes de uma clínica de aborto e de uma mulher que utilizou os serviços da clínica para abortar.

Em primeiro grau, o juiz concedeu a liberdade provisória e o Tribunal de Justiça após recurso do Ministério Público decretou a prisão preventiva (art. 312 do Código de Processo Penal).

A prisão preventiva foi decretada sem especificação dos elementos concretos que a autorizam.

Os réus recorreram ao Superior Tribunal de Justiça que não considerou ilegal o encarceramento.

Impetrou-se então Habeas Corpus no Supremo Tribunal Federal que ora se discute.

Qual é o tratamento que se dá atualmente ao aborto?

Atualmente, o aborto é crime tanto para a gestante que consente com ele (art. 124 do Código Penal) quanto para quem o promove (art. 126 do Código Penal), independentemente de ser médico ou não.

Esse crime se aplica de modo geral não importando quantos semanas de gestação o feto possui.

A lei cria duas situações em que não se considera crime o aborto feito por médico: o aborto necessário (art. 128, I, do Código Penal) e o aborto no caso de gravidez resultante de estupro (art. 128, II, do Código Penal).

O aborto necessário ocorre quando a vida da gestante corre perigo e não há outra forma de preservá-la senão o aborto.

O aborto no caso de gravidez resultante de estupro já está explicado pelo próprio nome.

Além dessas hipóteses legalmente previstas, o Supremo Tribunal Federal criou uma terceira ao julgar a ADPF 54, que é o caso em que o feto nasce com anencefalia.

Quem age dentro de qualquer dessas circunstâncias encontra-se protegido por uma causa excludente de ilicitude e não pratica crime.

Quais os argumentos utilizados pelo Ministro Barroso para fundamentar a decisão?

No caso que estamos analisando, o Ministro Luís Roberto Barroso utilizou os seguintes argumentos para fundamentar seu voto:

● Criminalizar o aborto viola os direitos sexuais e reprodutivos da mulher que não pode ser obrigada pelo Estado a manter uma gestação indesejada;

● Criminalizar o aborto viola a autonomia da mulher que deve conservar o direito de fazer suas escolhas existenciais;

● Criminalizar o aborto viola a integridade física e psíquica da gestante que é quem sofre os efeitos da gravidez;

● Criminalizar o aborto viola o direito à igualdade, já que homens não engravidam e, portanto, a equiparação plena de gênero depende de respeitar a vontade da mulher nessa matéria;

● Criminalizar o aborto impede que as mulheres pobres possam recorrer ao sistema público, multiplicando os casos de automutilação, lesões graves e óbitos decorrentes dos abortos clandestinos;

● Criminalizar o aborto é desproporcional porque:

I – é uma medida de duvidosa adequação por não proteger a vida do nascituro, visto que não produz impacto relevante sobre o número de abortos praticados no país, apenas impede que sejam feitos de modo seguro;

II – é possível que o Estado evite a ocorrência de abortos por meios mais eficazes e menos lesivos do que a criminalização, tais como educação sexual, distribuição de contraceptivos e amparo à mulher que deseja ter o filho, mas   se   encontra   em   condições   adversas;

III – é desproporcional em sentido estrito, por gerar custos sociais (problemas de saúde pública e mortes) superiores aos seus benefícios.

● Praticamente nenhum país democrático e desenvolvido do mundo trata a interrupção da gestação durante o primeiro trimestre como crime, aí incluídos Estados Unidos, Alemanha, Reino Unido, Canadá, França, Itália, Espanha, Portugal, Holanda e Austrália.

Refutando os fundamentos do voto de Barroso

A partir de agora o texto vai ficar um pouco mais técnico, mas se você estiver achando interessante e tiver paciência, ainda que não concorde com o meu posicionamento, gostaria que lesse até o fim.

Violação à autonomia da mulher

Etimologicamente a palavra autonomia vem do grego: autos que significa “o mesmo” e nomos que significa “lei, costume, convenção”.

A autonomia da vontade, portanto, diz respeito a se conduzir guiado por sua própria vontade, fazendo suas próprias regras.

Essa noção baseia-se no ideal libertário de que o seu corpo pertence a você e por isso somente a você cabe o direito de dizer como irá dele dispor, ou seja, meu corpo, minhas regras.

No entanto, como se sabe, não existe autonomia para dispor do corpo de outra pessoa, porque nesse caso seria uma heteronomia.

O embrião ou feto constitui um indivíduo distinto da mãe que não pode dele dispor, na medida em que não se trata de um objeto, mas de um ser vivo.

Barroso se esquiva da discussão sobre o início da vida e argumenta que independente desse início ocorrer na concepção ou no 3º mês a mulher terá sua autonomia violada caso seja impedida de optar livremente pelo aborto.

Esse argumento se funda na ideia de que o Estado não tem o direito de exercer ingerências sobre o corpo dos seus cidadãos.

Conquanto seja uma ideia atraente e que parece privilegiar o direito à liberdade, ela não se coaduna com a realidade jurídica brasileira e nem de nenhum país.

Tomemos o Brasil a título de exemplo.

Na prática, o Estado te impede de se automutilar (art. 13 do Código Civil), de se matar (art. 14 do Código Civil) e de vender os próprios órgãos (art. 15 da Lei 9.434/97), ou seja, dispõe sobre o seu corpo.

O Estado define o que pode ou não ser admitido como família (art. 226, §§3º e 4º da Constituição Federal), determina como você deve criar os seus filhos (art. 18-A do Estatuto da Criança e do Adolescente), dispõe sobre como você pode dispor dos seus bens (art. 549 do Código Civil), dispõe sobre os seus bens ao te cobrar tributos (art. 145 da Constituição Federal), dispõe sobre a sua liberdade te prendendo caso você não os pague (art. 1º da Lei 4.729/65) e em caso de guerra pode dispor até sobre a sua vida (art. 5º, XLVII, da Constituição Federal).

O Estado não só pode dispor sobre o seu corpo e diversos aspectos da sua vida como, de fato, o faz e negar isso é negar o próprio ordenamento jurídico.

Isso é bom? É ruim? É justo?

Cabe à filosofia, à política, à sociologia, à história, à psicologia, à antropologia e a outras disciplinas afins discutir.

Ao Direito cabe a análise deontológica, em outras palavras, se é permitido, proibido ou obrigatório.

Creio que os textos legais supracitados são exemplos suficientemente claros de que o ordenamento jurídico permite a ingerência do Estado na vida privada, em especial sobre os corpos, desde que respeitados os ditames constitucionais e democráticos.

Ora, no caso em tela, embora o diploma legal que contém o dispositivo questionado date de um período não democrático (1940 – Estado Novo) este foi devidamente recepcionado pela Constituição de 1988 e desde a sua promulgação ostensivamente aplicado, não só pelos tribunais inferiores, mas pelo próprio Supremo Tribunal Federal.

Na prática, o Legislador ponderou entre o direito à autonomia e à vida e entendeu que nesse caso deve prevalecer o segundo e o Judiciário, por sua vez, validou os dispositivos pela aplicação reiterada ao longo de mais de 20 anos.

A autonomia do ponto de vista individual tem sua aplicabilidade realmente reduzida devido ao peso maior que se conferiu ao direito à vida, porém ela não é eliminada, visto que o Estado não obriga ninguém a manter relações sexuais e quem o faz, faz porque assim deseja.

Quem é forçado a isso já está devidamente acobertado pela excludente de ilicitude supramencionada.

Paralelamente, a autonomia coletiva (autodeterminação dos povos) é privilegiada.

Isso porque na vida em sociedade inexiste liberdade plena, na medida em que os direitos dos outros inevitavelmente interferirão nos seus.

O pacto social pressupõe que um povo faz suas próprias regras e nossa Constituição deixa claro que o povo, na condição de titular do poder, o exerce por intermédio de seus representantes eleitos (art. 1º, parágrafo-único da Constituição Federal).

O povo brasileiro, no exercício de sua autonomia coletiva, decidiu que o aborto é crime e tentar mudar isso na força da canetada (no tapetão) é ilegítimo, para se dizer o mínimo.

No Estado Democrático de Direito vivemos sob o império da lei e se começarmos a alegar que ela a nós não se aplica ou permitirmos sejam elas declaradas inconstitucionais por afrontar nossa autonomia individual acabaremos implodindo a base normativa do nosso ordenamento jurídico.

Qualquer norma jurídica por definição limita a liberdade de alguém, visto que a função do Direito é manter a ordem e promover a pacificação social, estabelecendo balizas para a convivência harmônica das pessoas.

Todo libertário há de concordar comigo que o preço da liberdade é a responsabilidade e aquele que opta por agir deve arcar com as consequências dos seus atos.

Quem opta por praticar atos sexuais que incluam conjunção carnal está assumindo o risco de ter um filho, haja vista a existência de uma taxa de falha nos métodos contraceptivos.

Você tem liberdade e sua ação é livre na causa (actio libera in causa), mas você já sabe que pode resultar em uma gravidez e se isso ocorrer não será possível se livrar do bebê como quem se livra de um objeto, porquanto há uma baliza constitucional e legal imposta de modo democrático.

Alcunha-se de autonomia ou liberdade da mulher, mas que liberdade é essa que se deseja?

A liberdade de transar sem camisinha e depois poder se livrar com facilidade do bebê?

A liberdade de se embebedar e participar de orgias sem maiores preocupações, porque uma eventual gravidez pode ser livremente terminada?

O ministro disse que ninguém aborta por prazer ou porque mudou de ideia, mas será mesmo?

Talvez não por prazer, mas certamente por conveniência e covardia de assumir a responsabilidade pelos próprios atos.

No Estado Democrático de Direito não se admite liberdade sem responsabilidade.

A criminalização do aborto, portanto, privilegia o direito à vida e mitiga o direito de autonomia individual, conforme juízo de proporcionalidade previamente executado pelo próprio legislador.

Violação dos direitos sexuais e reprodutivos da mulher

Os direitos sexuais e reprodutivos da mulher incluem como o próprio ministro destacou ter uma vida sexual ativa e prazerosa, bem como decidir se e quando deseja ter filhos.

Ele, porém, afirma que o tratamento penal dado pelo Estado cerceia a capacidade de autodeterminação reprodutiva ao obrigar a mulher a manter uma gravidez indesejada, além de aumentar o índice de mortalidade materna e de complicações decorrentes da falta de acesso à saúde adequada.

Os argumentos aqui elencados apenas reproduzem o que já foi dito no tópico anterior só que por outro viés.

Para o Direito, desde que não seja com animais (art. 32 da Lei 9.605/98), com cadáveres (art. 212 do Código Penal) ou com quem não possa legalmente consentir (art. 217-A do Código Penal), tais como menores de idade e pessoas dopadas, não interessa o seu parceiro sexual.

O Estado não criminaliza o sexo e nem muito menos o planejamento familiar, mas sim o atentado contra a vida.

Vamos a alguns argumentos filosóficos...

A ideologia libertária defende a prevalência da autodeterminação enquanto valor, porém mesmo os libertários não admitem que alguém, por exemplo, possa vender um rim por um motivo fútil.

Michael J. Sandel explica que até os libertários não levam a ideia do meu corpo, minhas regras até as últimas consequências porque compreendem a verdade de um princípio conservador: há determinadas coisas que são sagradas e por isso precisam ser preservadas.

O sentido de sagrado aqui nada tem a ver com um viés religioso, mas sim um sagrado filosófico, no sentido de que algo é muito caro para uma comunidade e por isso merece ser preservado.

A vida por certo é filosoficamente sagrada, pois é o substrato para quaisquer outros direitos.

Ao fim e ao cabo pode até existir vida sem dignidade, mas não dá pra existir dignidade ou qualquer outro direito se não houver vida.

O aborto nega ao embrião ou feto seu direito à vida e todos os demais que a partir dele surgiriam.

O imperativo categórico kantiano aponta que o homem não pode ser instrumentalizado porquanto possui um valor intrínseco e é um fim em si mesmo (valor próprio da vida e dignidade humana).

Barroso argumenta que a mulher seria instrumentalizada ao se tornar “útero a serviço da sociedade” na medida em que o aborto é criminalizado.

Tal argumento pode ser facilmente invertido porquanto o embrião ou feto (que também são humanos) são objetificados a fim de satisfazer a conveniência sexual da mulher.

Só que falar em ideais libertários ou princípio conservador é discutir Filosofia e não Direito.

Argumentos filosóficos são metajurídicos e, portanto, não podem fundamentar uma decisão técnico-jurídica tal como um acórdão do Supremo.

Isso porque o juiz em sua atividade judicante não está lá para dizer o que pensa ou que acha justo, mas aquilo que o ordenamento permite, proíbe ou obriga.

Não existe discricionariedade do magistrado para se manifestar politicamente ou moralmente dentro de um instrumento de decisão jurídica, uma vez que não está agindo enquanto indivíduo, mas na qualidade de Estado-juiz.

Princípios não são valores, embora estes influenciem na gênese normativa daqueles.

Nosso sistema resguarda os direitos do nascituro que: pode ajuizar ação de alimentos gravídicos (art. 7º da Lei 8.560/92), pode receber doação (art. 542 do Código Civil), pode ser reconhecido pelo pai ainda no ventre (art. 1.611, parágrafo-único do Código Civil), pode ser curatelado (art. 1.779 do Código Civil), pode ser chamado a suceder (art. 1.799, I e 1.800 do Código Civil), tem direito à preservação do Meio Ambiente (art. 225 da Constituição Federal) etc.

A maioria desses direitos para ser plenamente exercida necessita do nascimento com vida (art. 2º do Código Civil), porém é inegável que o ordenamento reconhece a natureza humana do embrião ou feto (independente de quantas semanas).

Afinal, dentro de nosso Direito apenas seres humanos são titulares de direitos.

Ainda que se defenda que o nascituro não possui direitos, mas mera expectativa de direito, isso não exclui o reconhecimento jurídico de sua natureza humana, posto que coisas não podem ser titulares de expectativa de direito, apenas seres humanos.

A Convenção Interamericana de Direitos Humanos (Pacto de San Jose da Costa Rica) em seu art. 1º, item 2, ao definir seu escopo afirma que pessoa é todo ser humano.

Sabendo que o embrião e o feto não são coisas e nem animais, conclui-se que se trata de um ser humano, não obstante esteja ainda em formação.

O texto constitucional e infraconstitucional não faz qualquer restrição, considerando iguais, para efeitos de proteção, o embrião recém concebido e o feto de 9 meses.

Uma regra básica de hermenêutica é que se o legislador não fez restrição no texto, não cabe ao intérprete fazer.

Portanto, não dá pra saber do ponto de vista normativo, de onde saíram os 3 meses.

Aliás, eu sei! Saiu da vontade de usurpar a competência do Poder Legislativo e criar lei fora do procedimento constitucional de modo antidemocrático e ilegítimo.  

Não só o art. 5º da Constituição Federal assegura o direito do embrião ou feto à vida, como o art. 7º e 8º do Estatuto da Criança e do Adolescente lhe asseguram o direito ao nascimento e ao desenvolvimento sadio e harmonioso.

Embriões e fetos são seres biologicamente vivos, porque se movimentam, realizam síntese proteica, crescem, reagem a estímulos, possuem carga genética própria e se adaptam ao meio em que se encontram.

Só pra ter uma ideia, na 5ª semana de gestação (início do segundo mês) o coração já está batendo e os órgãos principais, tais como o fígado e os rins, já estão se formando.   

Assim, semelhantemente ao tópico anterior, o legislador realizou juízo de proporcionalidade entendendo por mitigar essa autodeterminação sexual no afã de resguardar a vida.

É importante ressaltar que a liberdade de realizar planejamento familiar está sujeita à regra de liberdade x responsabilidade já mencionada no tópico anterior, sobre fazer ou não fazer sexo e arcar com as eventuais consequências.

Não se pode esquecer ainda que o sexo com conjunção carnal não é a única modalidade existente, por assim dizer, logo não dá nem pra dizer que quem não quer correr o risco de ter filhos fica impedido de ser sexualmente ativo.

Os prejuízos à saúde reprodutiva, a mortalidade materna e outras complicações decorrentes da prática abortiva são sofrimentos autoinfligidos.  

Quem se submete a procedimento manifestamente ilegal e que se sabe ser clandestino assume para si o risco do que eventualmente possa ocorrer, não podendo o Estado ser culpabilizado por tais consequências.

Violação à integridade física e psíquica da mulher

O argumento é em suma o mesmo só que dessa vez alegando que a mulher é penalizada em sua integridade física e psíquica, por ser ela quem suportará as mudanças fisiológicas e a renúncia, dedicação e comprometimento decorrentes da gravidez.

Quem utilizou a fisiologia para conceber deve então usar a fisiologia para gestar, sob pena de nos tornarmos uma sociedade puramente hedonista, egocêntrica e irresponsável.

Quem teve lucidez psíquica para fazer livremente a escolha de ter conjunção carnal sem utilizar métodos contraceptivos eficazes deve sim suportar a renúncia, a dedicação e o comprometimento da gravidez.

E se é pra falar de violação à integridade física e psíquica, a prática do aborto constitui violência muito maior do que a gravidez.

Sob o aspecto físico, o aborto pode gerar hemorragia profusa, perfuração uterina, retenção de restos de placenta, seguida de infecção, peritonite, tétano e septicemia.

Do ponto de vista psíquico, o aborto provoca: queda na autoestima pessoal pela destruição do próprio filho, frigidez (perda do desejo sexual), aversão ao marido ou ao amante, culpabilidade ou frustração de seu instinto materno, desordens nervosas, insônia, neuroses diversas, doenças psicossomáticas, oscilações de ânimo, choro imotivado, medos, pesadelos e depressões.

Psiquiatras já atestaram que tais consequências não têm necessariamente a ver com padrões morais religiosos, já que se reproduzem igualmente em mulheres ateias, agnósticas e sem religião declarada.

Ao passo que eventual legalização diminuiria os riscos do aspecto físico, apenas multiplicaria exponencialmente os do aspecto psíquico.

Por esta perspectiva, inverte-se o argumento, uma vez que o aborto ainda que com o consentimento da gestante pode acarretar a ela danos maiores que a gravidez.

Pode ser clichê, mas o ventre da mulher não foi feito pra ser túmulo, mas sim berço de vida.

Independente de outros argumentos teleológicos, o ordenamento apenas admite a supressão da vida em respeito a outros direitos em situações extremas como são os casos do aborto necessário, do aborto em caso de estupro, do aborto de feto anencefálico, da legítima defesa, do estado de necessidade ou dos crimes militares durante guerra declarada.

Dito isso, é juridicamente inadmissível dispor da vida em prol da integridade física e psíquica, salvo em situações excepcionais.

A gravidez, embora enseje alterações significativas no corpo e na psique da mulher, nem de longe se compara à extirpação total da vida, que é o que ocorrerá com o feto em caso de aborto.

Realizar uma interpretação conforme a Constituição que permite o aborto até o 3º mês sem qualquer outro requisito ou exigência é tratar de modo leviano aquilo que o sistema jurídico trata com o maior rigor e seriedade.

É, na prática, fazer substituir a carga valorativa que o ordenamento jurídico expressa como um todo, a partir da análise conjunta de suas normas, pela carga valorativa subjetiva do intérprete do texto.

Considerar que a Constituição permite o aborto até o 3º mês é criar exceção à regra sem qualquer base normativa, pois inexiste menção a este estágio da gravidez na Constituição ou na lei.

Decidir sobre o sistema jurídico sem base no sistema jurídico é decidir por arbítrio e vontade de poder, constituindo verdadeiro ato de juristocracia ou de império da toga.

A ausência de fundamento para a virada jurisprudencial

Para além disso, a decisão do Ministro Barroso não cumpre o ônus argumentativo de explicar a virada jurisprudencial.

Explicando...

Até o presente momento, o Supremo Tribunal Federal vem decidindo reiteradamente pela constitucionalidade dos referidos dispositivos.

Não houve alteração normativa que ensejasse modificação substancial a ponto de inverter diametralmente a interpretação dos dispositivos.

Ronald Dworkin explica que os precedentes de um tribunal exercem força vinculante sobre os casos futuros, na proporção em que casos semelhantes por força da isonomia requerem soluções semelhantes.

Isso significa que para promover uma mudança jurisprudencial desse nível o tribunal possui o ônus argumentativo de demonstrar os elementos jurídicos que fundamentaram a mudança.

Tais elementos, por certo, não existem.

Alguém poderia argumentar que foi a mudança dos fatos que ensejou a virada jurisprudencial.

Tal argumento esbarra na Teoria Geral do Direito Brasileiro que inadmite o costume contra legem e não reconhece a perda da validade pela inefetividade de uma lei, cuja imperatividade permanece intacta até que seja revogada por outra lei.

Ainda que excepcionalmente possa haver uma mutação constitucional, tal expediente não pode ser usado para reescrever o texto legal.

Isso porque o Judiciário só pode atuar como Legislador Negativo, sob pena de violar a separação de poderes (art. 2º da Constituição Federal).

Ora, os argumentos de Barroso se levados ao pé da letra se aplicam a todo e qualquer feto ou embrião independente da semana de gestação em que se encontre, o que significa que ou se mantém como está ou se descriminaliza tudo.

Como inexiste menção em qualquer texto sobre o limite do 3º mês, isto significa que tal elemento é estranho à norma e foi incluído pelo julgador em claro exercício legislativo.

Isso é inaceitável e um verdadeiro vilipêndio ao ordenamento jurídico travestido de interpretação.

Todos os pós-positivistas sabem que texto e norma não são a mesma coisa, mas norma descolada do texto não é Estado Democrático é Ditadura Judicial.

Violação do direito à igualdade

Este argumento é um contrassenso porque tenta tergiversar o que, de fato, se discute.

Há uma desigualdade histórica entre homens e mulheres? Sim!

São necessárias medidas de discriminação positiva para proteger as mulheres? Sim!

Isso justifica ceifar uma vida? Não!

Provocar uma injustiça para tentar compensar outra não faz o menor sentido, porque é supor que os fins justificam os meios.

E se estamos falando de igualdade, na qualidade de ser humano, o feto também se equipara à mulher gestante ou ao médico da clínica, não havendo elemento de discrímen constitucionalmente aceitável que permita diferenciá-los em termos de direito à vida.

Utilizar uma realidade distópica como argumento como fez Ayres Brito pode até funcionar em uma obra literária, mas em um texto técnico apenas desvia o foco do que realmente se discute.

O princípio da isonomia como direito da mulher se opõe ao homem e não ao nascituro que é quem está, de fato, em julgamento aqui.

Acesso das mulheres pobres ao sistema público

A base desde argumento é que as pessoas praticarão o aborto, não obstante a existência de vedação legal.

Pauta-se na ideia de adequação social em detrimento da lei.
Dworkin ao falar sobre validade das normas jurídicas explica que existem dois tipos de moralidade: a moralidade convencional e a concorrente.

Na moralidade convencional, a norma se baseia no acordo social, ou seja, depende daquilo que se pratica.

Na moralidade concorrente, embora a maioria concorde com a existência da norma, ela não se fundamenta na prática social.

O Direito se alinha a essa segunda espécie de moralidade.

Explicando...

Se aplicarmos a moralidade convencional ao Direito, passaremos a permitir o homicídio, a institucionalizar a corrupção e a incentivar o furto.

Tais prática, embora vedadas pelo ordenamento, são diuturnamente praticadas e nem por isso o art. 121 do Código Penal perdeu sua validade e nem por isso estamos discutindo ampliar as hipóteses em que o furto é possível ou buscando legitimar a corrupção porque ela acontecerá assim mesmo apesar da proibição.

Este argumento beira as raias da insanidade ao tergiversar mais uma vez utilizando o princípio da igualdade.

O argumento aponta que os ricos têm mais recursos para violar o sistema jurídico e sair impunes.

Isso é um fato notório em se tratando de qualquer infração, seja ela penal ou não.

E isso não justifica a descriminalização do aborto, porque a igualdade é oponível pelo pobre em relação ao rico, mas não em relação ao nascituro.

Inclusive quando se fala em assegurar uma isonomia substancial protege-se o mais fraco em relação ao mais forte, ou seja, tutela-se o vulnerável.

Nessa hipótese, o mais vulnerável certamente é o nascituro que precisa ser protegido em face de toda a sociedade.

Outra base desse argumento é de cunho estritamente utilitarista, porque entende que a permissão do aborto trará maior felicidade coletiva ou um melhor custo-benefício social.

A falha do raciocínio utilitarista é porque nega exatamente o imperativo categórico kantiano ao instrumentalizar o nascituro atingindo-lhe a vida e a dignidade.

Dworkin também ensina que políticas e princípios são coisas diferentes.

Políticas são objetivos de maximização dos benefícios da sociedade como um todo e princípios, parafraseando Alexy, são comandos de otimização do sistema jurídico (verdadeiras normas fundamentais com baixa densidade semântica que se diferenciam das regras sobretudo por sua dimensão de peso).

Decidir que é melhor descriminalizar o aborto porque é uma questão de saúde pública das mulheres pobres, favorecendo a sociedade como um todo, é decidir por política e não por princípio.

Na prática é decidir à margem do Direito.

Quanto aos pobres, o governo já fornece cartilhas, palestras e contraceptivos gratuitamente nas unidades básicas de saúde.

Além disso, existe jornal, televisão, internet e boca pra perguntar, então não dá pra esperar que alguém queira se escusar de cumprir a lei alegando não conhecê-la.

O homem médio (pessoa comum, de entendimento mediano) sabe que fazer sexo pode gerar gravidez e que abortar é ilegal, então não adianta tentar passar nenhum discurso de coitadismo (a falácia da misericórdia como diria Juarez de Freitas).

Tem muita gente enchendo a casa de crianças por simples irresponsabilidade.

É preciso levar os direitos à sério!

Desproporcionalidade da criminalização

A proporcionalidade é um método de ponderação utilizado para solucionar a colisão de direitos fundamentais, cuja natureza é reconhecidamente principiológica.

I – Adequação

Para embasar seu raciocínio de adequação Barroso traz ao processo um único estudo que supostamente conclui pela irrelevância da legalização no número de abortos praticados.

Em primeiro lugar, o estudo é único e foi elaborado em um contexto europeu, embora tenha analisado dados de vários países.

A meu ver um único estudo não é o bastante para concluir pela inadequação do crime de aborto, ainda mais se ele não tiver sido realizado tendo em vista a realidade própria da América Latina, que é bem diferente do resto do mundo.

Não há precisão suficiente por conta de eventuais cifras ocultas e possíveis falhas de metodologia, sendo necessário um amplo debate em cima desse ponto.

Em segundo lugar, essa conclusão contraria a lógica básica segundo a qual a permissão de uma conduta outrora proibida certamente aumentará sua prática.

Em terceiro lugar, se a existência de tipo penal incriminador não está conseguindo desestimular as taxas de aborto a conclusão é exatamente a oposta: em vez de descriminalizar é necessário recrudescer as penas para quem pratica tal ilícito, tendo em vista a vedação à proteção insuficiente do direito fundamental à vida.

É preciso considerar a ineficiência de nossa Justiça Criminal que deixa impune inúmeros criminosos todos os anos e o fato de que o crime de aborto é apenas de médio potencial ofensivo, possibilitando benefícios penais, conforme as circunstâncias.

Esses fatores reduzem o caráter intimidador do tipo penal e referida inadequação, se existir, pode ter origem em outros fatores de ordem pragmática.

Por isso, uma análise que conclua pela ausência de adequação considerando apenas números artificias sem confrontá-los com a realidade prática do Brasil é rasa e temerária.

Em quarto lugar, a pretensa neutralidade estatal proposta por Barroso é fantasiosa e não passa de uma clara demonstração de sua incapacidade de abrir mão dos próprios valores para julgar conforme os valores já sedimentados no ordenamento jurídico.

Embora a moralidade judaico-cristã tenha influído diretamente na construção de nossa base normativa, a ilicitude do aborto não se lastreia em convicções religiosas, mas em princípios jurídicos que se espraiam por todo o sistema como alhures demonstrado.

II – Necessidade

Barroso afirma que a criminalização é desnecessária porque outros métodos menos gravosos à mulher poderiam ser utilizados para resguardar a vida do nascituro.

O posicionamento do ministro desconsidera a relevância que o ordenamento confere ao direito à vida.

Uma simples lida no Código Penal leva à conclusão de que a vida é bem jurídico de relevância ímpar e para sua proteção o legislador invariavelmente utiliza o sistema penal repressivo com ameaças de perda da liberdade.

Métodos como educação sexual, programas de planejamento familiar, apoio à gestante e à família e distribuição de contraceptivos certamente são eficientes, mas sozinhos não constituem uma base forte o bastante para proteger a vida.

Se o homicídio deixasse de ser crime, a melhoria na educação nas escolas não seria instrumento de proteção suficiente para a vida, apesar de sua inegável capacidade de desestimular a prática criminosa.

Os elementos criminogênicos são inúmeros e supor que essas medidas extrapenais seriam suficientes para resguardar os nascituros é ingenuidade.

O ideal é combinar de modo eficiente ambas as iniciativas, penais e extrapenais.

Ao enunciar as principais causas invocadas para abortar: a impossibilidade de custear a criação dos filhos e a drástica mudança na vida da mãe, Barroso corrobora minha tese.

Pessoas que querem abortar se movem por sua irresponsabilidade e por sua conveniência.

Uns alegam pensar no futuro da criança e alegando isso roubam qualquer chance que ela teria de futuro e outros ainda mais mesquinhos trocariam prontamente a vida de uma criança por uma realização profissional ou uma comodidade.

Dito isso, tem-se que a repressão penal se faz extremamente necessária no contexto brasileiro.

III – Proporcionalidade em sentido estrito

O discurso do ministro é pífio.

Se você criminaliza o aborto e obriga a gestante a levar a gravidez até o fim, por certo, vários direitos da mulher são mitigados, mas ainda que fragilizados eles continuarão lá.

Se, porém, o aborto for admitido, privilegia-se os direitos da mulher, mas o nascituro perde todos os seus que são sustentados pela única coisa que ele possui e que independe do nascimento: a vida.

Exemplificativamente, se eu tenho 5 direitos e outra pessoa só tem 1, sendo que este um é a única esperança dela de conseguir os demais, tem-se que é injusto privilegiar os meus 5 direitos e retirar do outro o único que possui.

Ante o exposto, conclui-se que o crime de aborto é proporcional em sentido estrito.

Tratamento dado por outros países

Para responder a este argumento reproduzo uma conversa que tive com a minha mãe na adolescência várias vezes:

- Mamãe, quero sair com os meus amigos pra tal lugar.

- Você não vai.

- Mas mamãe, todo mundo vai.

- Você não é todo mundo  

Em outras palavras, lá é lá e aqui é aqui.

As normas de Direito Estrangeiro (ou alienígena como falamos no Direito) não são vinculantes e servem apenas para comparação, ou seja, este argumento é de ordem filosófica.

Como foi exaustivamente demonstrado, nosso ordenamento jurídico protege o nascituro e só permite que lhe seja retirada a vida em hipóteses restritas e previamente enumeradas.

A tentativa do ministro de taxar os costumes do povo brasileiro de retrógrados é apenas mais uma demonstração do solipsismo que reina no Judiciário brasileiro.

Afinal de contas, é melhor infamar os costumes do seu próprio povo e negar os valores sedimentados na Constituição do que abrir mão das próprias ideologias para decidir de forma técnica.

Autolimitação do Judiciário e proselitismo

Para finalizar este texto, acho interessante destacar que o impetrante do Habeas Corpus sequer mencionou tais fundamentos, pois sua ideia era apenas demonstrar a evidente inexistência de preenchimento dos requisitos da prisão preventiva.

É curioso que o ministro mesmo já tendo fundamentos suficientes para dar a ordem de liberdade de ofício não o fez, mas preferiu se aventurar em uma aventura argumentativa de um tema tormentoso em sede de controle difuso.

O fez mesmo sabendo que o Habeas Corpus não permite dilação probatória (espaço para produção de provas) e tem um rito célere.

Não posso afirmar, mas isso fede a proselitismo e patrocínio de interesses políticos e bandeiras pessoais no exercício da judicatura.

Isso não apenas esmaece o brilho da nobre e árdua profissão de juiz, mas atenta contra a imagem do Judiciário e contra a técnica jurídica.

Felizmente, o Legislativo parece ter acordado e dá sinais de que vai agir.

Acordemos também profissionais do Direito, antes que os livros que lemos deixem de ser sobre normas e passem a tratar dos gostos pessoais de cada magistrado.

Nenhum comentário:

Postar um comentário