JusAmiguinhos,
terça-feira, dia 29/11, saiu uma polêmica decisão do Supremo Tribunal Federal
“descriminalizando” o aborto até o 3º mês de gestação ou pelo menos isso foi o
que a mídia veiculou.
Hoje, vamos verificar o
que de fato aconteceu e falar um pouco sobre o tema.
O
aborto até o 3º mês realmente foi descriminalizado?
Não. Acompanhe o meu
raciocínio...
O Supremo Tribunal
Federal foi consagrado pela Constituição Federal como seu intérprete e
guardião.
Isso significa que cabe
ao Supremo sanar as dúvidas e divergências interpretativas do texto
constitucional, além de zelar pelo seu efetivo cumprimento.
Em sua atuação, ele
trabalha de duas formas: controle concentrado e controle difuso.
O controle concentrado
permite que algumas pessoas ou entidades previamente elencadas (art. 103 da
Constituição Federal) possam propor ações para questionar a constitucionalidade
de dispositivos legais.
Quando essas entidades
ajuízam Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI), Ação Declaratória de
Constitucionalidade (ADC) ou Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental
(ADPF), a decisão tomada pelo Supremo naquele caso passa a valer para todos os
casos semelhantes automaticamente, ou seja, torna-se vinculante.
Se um juiz de 1º grau ou
desembargador decidir diferente, o advogado da parte prejudicada pode ajuizar
uma reclamação no Supremo e este cassará a decisão, fazendo valer o
entendimento por ele fixado.
O controle difuso pode
ocorrer em qualquer caso desde que haja violação direta do texto
constitucional.
Nessas hipóteses, havendo
o preenchimento dos requisitos legais, é possível levar o caso ao Supremo por
meio de um Recurso Extraordinário ou de um remédio constitucional, como o Habeas Corpus.
Aquilo que é decidido em
controle difuso só vale para aquele caso específico, a menos que o Senado por
meio de Decreto Legislativo decida suspender a eficácia da lei declarada
inconstitucional (art. 52, X, da Constituição Federal).
O caso que estamos
analisando trata de um Habeas Corpus
(HC 124.306 RJ) que chegou ao Supremo em sede de controle difuso, logo a
decisão vale apenas para o caso concreto e os demais juízes não são obrigados a
seguir o mesmo entendimento.
Mas
essa decisão pode ser considerada uma tendência?
Não dá pra saber.
O STF é composto de 11
ministros e trabalha subdividido em duas turmas, cada uma com 5 ministros,
sendo que o Presidente não conta, porque de regra ele não vota.
Essa decisão foi tomada pela
1ª turma, sendo que 3 dos 5 ministros fundamentaram seus votos com base na
inconstitucionalidade dos arts. 124 a 126 do Código Penal que tratam do crime
de aborto.
Isso significa que embora
todos tenham votado por colocar os réus em liberdade apenas 3, Barroso, Fachin
e Weber, entendem que o aborto é inconstitucional, o que pode ser considerado
um placar apertado.
O tema é muito
controverso e é difícil saber que posição sairia vencedora se fosse levado a
plenário em sede de controle concentrado.
Mas se perguntarem,
acredito que há uma tendência nesse sentido por dois motivos: o primeiro é o
que os Cursos de Direito no Brasil costumam se posicionar mais à esquerda e
para essa linha de pensamento o direito ao aborto é considerado um progresso e
o segundo é que o Supremo já está pegando o gosto de legislar no lugar do
Congresso Nacional.
E
o que estava sendo discutido nesse caso específico?
No caso específico, discute-se
a situação de vários integrantes de uma clínica de aborto e de uma mulher que
utilizou os serviços da clínica para abortar.
Em primeiro grau, o juiz
concedeu a liberdade provisória e o Tribunal de Justiça após recurso do
Ministério Público decretou a prisão preventiva (art. 312 do Código de Processo
Penal).
A prisão preventiva foi
decretada sem especificação dos elementos concretos que a autorizam.
Os réus recorreram ao
Superior Tribunal de Justiça que não considerou ilegal o encarceramento.
Impetrou-se então Habeas Corpus no Supremo Tribunal Federal
que ora se discute.
Qual
é o tratamento que se dá atualmente ao aborto?
Atualmente, o aborto é
crime tanto para a gestante que consente com ele (art. 124 do Código Penal)
quanto para quem o promove (art. 126 do Código Penal), independentemente de ser
médico ou não.
Esse crime se aplica de
modo geral não importando quantos semanas de gestação o feto possui.
A lei cria duas situações
em que não se considera crime o aborto feito por médico: o aborto necessário
(art. 128, I, do Código Penal) e o aborto no caso de gravidez resultante de
estupro (art. 128, II, do Código Penal).
O aborto necessário
ocorre quando a vida da gestante corre perigo e não há outra forma de
preservá-la senão o aborto.
O aborto no caso de
gravidez resultante de estupro já está explicado pelo próprio nome.
Além dessas hipóteses
legalmente previstas, o Supremo Tribunal Federal criou uma terceira ao julgar a
ADPF 54, que é o caso em que o feto nasce com anencefalia.
Quem age dentro de
qualquer dessas circunstâncias encontra-se protegido por uma causa excludente
de ilicitude e não pratica crime.
Quais
os argumentos utilizados pelo Ministro Barroso para fundamentar a decisão?
No caso que estamos
analisando, o Ministro Luís Roberto Barroso utilizou os seguintes argumentos
para fundamentar seu voto:
● Criminalizar o aborto
viola os direitos sexuais e reprodutivos da mulher que não pode ser obrigada
pelo Estado a manter uma gestação indesejada;
● Criminalizar o aborto
viola a autonomia da mulher que deve conservar o direito de fazer suas escolhas
existenciais;
● Criminalizar o aborto
viola a integridade física e psíquica da gestante que é quem sofre os efeitos
da gravidez;
● Criminalizar o aborto
viola o direito à igualdade, já que homens não engravidam e, portanto, a
equiparação plena de gênero depende de respeitar a vontade da mulher nessa
matéria;
● Criminalizar o aborto
impede que as mulheres pobres possam recorrer ao sistema público, multiplicando
os casos de automutilação, lesões graves e óbitos decorrentes dos abortos
clandestinos;
● Criminalizar o aborto é
desproporcional porque:
I – é uma medida de
duvidosa adequação por não proteger a vida do nascituro, visto que não produz
impacto relevante sobre o número de abortos praticados no país, apenas impede
que sejam feitos de modo seguro;
II – é possível que o
Estado evite a ocorrência de abortos por meios mais eficazes e menos lesivos do
que a criminalização, tais como educação sexual, distribuição de contraceptivos
e amparo à mulher que deseja ter o filho, mas
se encontra em
condições adversas;
III – é desproporcional
em sentido estrito, por gerar custos sociais (problemas de saúde pública e
mortes) superiores aos seus benefícios.
● Praticamente nenhum
país democrático e desenvolvido do mundo trata a interrupção da gestação
durante o primeiro trimestre como crime, aí incluídos Estados Unidos, Alemanha,
Reino Unido, Canadá, França, Itália, Espanha, Portugal, Holanda e Austrália.
Refutando
os fundamentos do voto de Barroso
A partir de agora o texto
vai ficar um pouco mais técnico, mas se você estiver achando interessante e
tiver paciência, ainda que não concorde com o meu posicionamento, gostaria que
lesse até o fim.
Violação
à autonomia da mulher
Etimologicamente a
palavra autonomia vem do grego: autos
que significa “o mesmo” e nomos que
significa “lei, costume, convenção”.
A autonomia da vontade,
portanto, diz respeito a se conduzir guiado por sua própria vontade, fazendo
suas próprias regras.
Essa noção baseia-se no
ideal libertário de que o seu corpo pertence a você e por isso somente a você
cabe o direito de dizer como irá dele dispor, ou seja, meu corpo, minhas
regras.
No entanto, como se sabe,
não existe autonomia para dispor do corpo de outra pessoa, porque nesse caso
seria uma heteronomia.
O embrião ou feto
constitui um indivíduo distinto da mãe que não pode dele dispor, na medida em
que não se trata de um objeto, mas de um ser vivo.
Barroso se esquiva da
discussão sobre o início da vida e argumenta que independente desse início
ocorrer na concepção ou no 3º mês a mulher terá sua autonomia violada caso seja
impedida de optar livremente pelo aborto.
Esse argumento se funda
na ideia de que o Estado não tem o direito de exercer ingerências sobre o corpo
dos seus cidadãos.
Conquanto seja uma ideia
atraente e que parece privilegiar o direito à liberdade, ela não se coaduna com
a realidade jurídica brasileira e nem de nenhum país.
Tomemos o Brasil a título
de exemplo.
Na prática, o Estado te
impede de se automutilar (art. 13 do Código Civil), de se matar (art. 14 do
Código Civil) e de vender os próprios órgãos (art. 15 da Lei 9.434/97), ou
seja, dispõe sobre o seu corpo.
O Estado define o que
pode ou não ser admitido como família (art. 226, §§3º e 4º da Constituição
Federal), determina como você deve criar os seus filhos (art. 18-A do Estatuto
da Criança e do Adolescente), dispõe sobre como você pode dispor dos seus bens
(art. 549 do Código Civil), dispõe sobre os seus bens ao te cobrar tributos (art.
145 da Constituição Federal), dispõe sobre a sua liberdade te prendendo caso
você não os pague (art. 1º da Lei 4.729/65) e em caso de guerra pode dispor até
sobre a sua vida (art. 5º, XLVII, da Constituição Federal).
O Estado não só pode
dispor sobre o seu corpo e diversos aspectos da sua vida como, de fato, o faz e
negar isso é negar o próprio ordenamento jurídico.
Isso é bom? É ruim? É
justo?
Cabe à filosofia, à
política, à sociologia, à história, à psicologia, à antropologia e a outras
disciplinas afins discutir.
Ao Direito cabe a análise
deontológica, em outras palavras, se é permitido, proibido ou obrigatório.
Creio que os textos
legais supracitados são exemplos suficientemente claros de que o ordenamento
jurídico permite a ingerência do Estado na vida privada, em especial sobre os
corpos, desde que respeitados os ditames constitucionais e democráticos.
Ora, no caso em tela,
embora o diploma legal que contém o dispositivo questionado date de um período
não democrático (1940 – Estado Novo) este foi devidamente recepcionado pela
Constituição de 1988 e desde a sua promulgação ostensivamente aplicado, não só
pelos tribunais inferiores, mas pelo próprio Supremo Tribunal Federal.
Na prática, o Legislador
ponderou entre o direito à autonomia e à vida e entendeu que nesse caso deve
prevalecer o segundo e o Judiciário, por sua vez, validou os dispositivos pela
aplicação reiterada ao longo de mais de 20 anos.
A autonomia do ponto de
vista individual tem sua aplicabilidade realmente reduzida devido ao peso maior
que se conferiu ao direito à vida, porém ela não é eliminada, visto que o
Estado não obriga ninguém a manter relações sexuais e quem o faz, faz porque
assim deseja.
Quem é forçado a isso já
está devidamente acobertado pela excludente de ilicitude supramencionada.
Paralelamente, a
autonomia coletiva (autodeterminação dos povos) é privilegiada.
Isso porque na vida em
sociedade inexiste liberdade plena, na medida em que os direitos dos outros
inevitavelmente interferirão nos seus.
O pacto social pressupõe
que um povo faz suas próprias regras e nossa Constituição deixa claro que o
povo, na condição de titular do poder, o exerce por intermédio de seus
representantes eleitos (art. 1º, parágrafo-único da Constituição Federal).
O povo brasileiro, no
exercício de sua autonomia coletiva, decidiu que o aborto é crime e tentar
mudar isso na força da canetada (no tapetão) é ilegítimo, para se dizer o
mínimo.
No Estado Democrático de
Direito vivemos sob o império da lei e se começarmos a alegar que ela a nós não
se aplica ou permitirmos sejam elas declaradas inconstitucionais por afrontar
nossa autonomia individual acabaremos implodindo a base normativa do nosso
ordenamento jurídico.
Qualquer norma jurídica
por definição limita a liberdade de alguém, visto que a função do Direito é
manter a ordem e promover a pacificação social, estabelecendo balizas para a
convivência harmônica das pessoas.
Todo libertário há de
concordar comigo que o preço da liberdade é a responsabilidade e aquele que
opta por agir deve arcar com as consequências dos seus atos.
Quem opta por praticar
atos sexuais que incluam conjunção carnal está assumindo o risco de ter um
filho, haja vista a existência de uma taxa de falha nos métodos contraceptivos.
Você tem liberdade e sua
ação é livre na causa (actio libera in
causa), mas você já sabe que pode resultar em uma gravidez e se isso
ocorrer não será possível se livrar do bebê como quem se livra de um objeto,
porquanto há uma baliza constitucional e legal imposta de modo democrático.
Alcunha-se de autonomia
ou liberdade da mulher, mas que liberdade é essa que se deseja?
A liberdade de transar
sem camisinha e depois poder se livrar com facilidade do bebê?
A liberdade de se
embebedar e participar de orgias sem maiores preocupações, porque uma eventual
gravidez pode ser livremente terminada?
O ministro disse que
ninguém aborta por prazer ou porque mudou de ideia, mas será mesmo?
Talvez não por prazer,
mas certamente por conveniência e covardia de assumir a responsabilidade pelos
próprios atos.
No Estado Democrático de Direito
não se admite liberdade sem responsabilidade.
A criminalização do
aborto, portanto, privilegia o direito à vida e mitiga o direito de autonomia
individual, conforme juízo de proporcionalidade previamente executado pelo
próprio legislador.
Violação
dos direitos sexuais e reprodutivos da mulher
Os direitos sexuais e
reprodutivos da mulher incluem como o próprio ministro destacou ter uma vida
sexual ativa e prazerosa, bem como decidir se e quando deseja ter filhos.
Ele, porém, afirma que o
tratamento penal dado pelo Estado cerceia a capacidade de autodeterminação
reprodutiva ao obrigar a mulher a manter uma gravidez indesejada, além de
aumentar o índice de mortalidade materna e de complicações decorrentes da falta
de acesso à saúde adequada.
Os argumentos aqui
elencados apenas reproduzem o que já foi dito no tópico anterior só que por
outro viés.
Para o Direito, desde que
não seja com animais (art. 32 da Lei 9.605/98), com cadáveres (art. 212 do
Código Penal) ou com quem não possa legalmente consentir (art. 217-A do Código
Penal), tais como menores de idade e pessoas dopadas, não interessa o seu
parceiro sexual.
O Estado não criminaliza
o sexo e nem muito menos o planejamento familiar, mas sim o atentado contra a
vida.
Vamos a alguns argumentos
filosóficos...
A ideologia libertária defende
a prevalência da autodeterminação enquanto valor, porém mesmo os libertários
não admitem que alguém, por exemplo, possa vender um rim por um motivo fútil.
Michael J. Sandel explica
que até os libertários não levam a ideia do meu corpo, minhas regras até as
últimas consequências porque compreendem a verdade de um princípio conservador:
há determinadas coisas que são sagradas e por isso precisam ser preservadas.
O sentido de sagrado aqui
nada tem a ver com um viés religioso, mas sim um sagrado filosófico, no sentido
de que algo é muito caro para uma comunidade e por isso merece ser preservado.
A vida por certo é
filosoficamente sagrada, pois é o substrato para quaisquer outros direitos.
Ao fim e ao cabo pode até
existir vida sem dignidade, mas não dá pra existir dignidade ou qualquer outro
direito se não houver vida.
O aborto nega ao embrião
ou feto seu direito à vida e todos os demais que a partir dele surgiriam.
O imperativo categórico
kantiano aponta que o homem não pode ser instrumentalizado porquanto possui um
valor intrínseco e é um fim em si mesmo (valor próprio da vida e dignidade
humana).
Barroso argumenta que a
mulher seria instrumentalizada ao se tornar “útero a serviço da sociedade” na
medida em que o aborto é criminalizado.
Tal argumento pode ser
facilmente invertido porquanto o embrião ou feto (que também são humanos) são
objetificados a fim de satisfazer a conveniência sexual da mulher.
Só que falar em ideais
libertários ou princípio conservador é discutir Filosofia e não Direito.
Argumentos filosóficos
são metajurídicos e, portanto, não podem fundamentar uma decisão
técnico-jurídica tal como um acórdão do Supremo.
Isso porque o juiz em sua
atividade judicante não está lá para dizer o que pensa ou que acha justo, mas aquilo
que o ordenamento permite, proíbe ou obriga.
Não existe discricionariedade
do magistrado para se manifestar politicamente ou moralmente dentro de um
instrumento de decisão jurídica, uma vez que não está agindo enquanto
indivíduo, mas na qualidade de Estado-juiz.
Princípios não são
valores, embora estes influenciem na gênese normativa daqueles.
Nosso sistema resguarda
os direitos do nascituro que: pode ajuizar ação de alimentos gravídicos (art.
7º da Lei 8.560/92), pode receber doação (art. 542 do Código Civil), pode ser
reconhecido pelo pai ainda no ventre (art. 1.611, parágrafo-único do Código
Civil), pode ser curatelado (art. 1.779 do Código Civil), pode ser chamado a
suceder (art. 1.799, I e 1.800 do Código Civil), tem direito à preservação do
Meio Ambiente (art. 225 da Constituição Federal) etc.
A maioria desses direitos
para ser plenamente exercida necessita do nascimento com vida (art. 2º do
Código Civil), porém é inegável que o ordenamento reconhece a natureza humana
do embrião ou feto (independente de quantas semanas).
Afinal, dentro de nosso
Direito apenas seres humanos são titulares de direitos.
Ainda que se defenda que
o nascituro não possui direitos, mas mera expectativa de direito, isso não
exclui o reconhecimento jurídico de sua natureza humana, posto que coisas não
podem ser titulares de expectativa de direito, apenas seres humanos.
A Convenção
Interamericana de Direitos Humanos (Pacto de San Jose da Costa Rica) em seu
art. 1º, item 2, ao definir seu escopo afirma que pessoa é todo ser humano.
Sabendo que o embrião e o
feto não são coisas e nem animais, conclui-se que se trata de um ser humano,
não obstante esteja ainda em formação.
O texto constitucional e
infraconstitucional não faz qualquer restrição, considerando iguais, para
efeitos de proteção, o embrião recém concebido e o feto de 9 meses.
Uma regra básica de
hermenêutica é que se o legislador não fez restrição no texto, não cabe ao
intérprete fazer.
Portanto, não dá pra
saber do ponto de vista normativo, de onde saíram os 3 meses.
Aliás, eu sei! Saiu da
vontade de usurpar a competência do Poder Legislativo e criar lei fora do
procedimento constitucional de modo antidemocrático e ilegítimo.
Não só o art. 5º da
Constituição Federal assegura o direito do embrião ou feto à vida, como o art.
7º e 8º do Estatuto da Criança e do Adolescente lhe asseguram o direito ao
nascimento e ao desenvolvimento sadio e harmonioso.
Embriões e fetos são
seres biologicamente vivos, porque se movimentam, realizam síntese proteica,
crescem, reagem a estímulos, possuem carga genética própria e se adaptam ao
meio em que se encontram.
Só pra ter uma ideia, na
5ª semana de gestação (início do segundo mês) o coração já está batendo e os
órgãos principais, tais como o fígado e os rins, já estão se formando.
Assim, semelhantemente ao
tópico anterior, o legislador realizou juízo de proporcionalidade entendendo
por mitigar essa autodeterminação sexual no afã de resguardar a vida.
É importante ressaltar
que a liberdade de realizar planejamento familiar está sujeita à regra de
liberdade x responsabilidade já mencionada no tópico anterior, sobre fazer ou
não fazer sexo e arcar com as eventuais consequências.
Não se pode esquecer
ainda que o sexo com conjunção carnal não é a única modalidade existente, por
assim dizer, logo não dá nem pra dizer que quem não quer correr o risco de ter
filhos fica impedido de ser sexualmente ativo.
Os prejuízos à saúde
reprodutiva, a mortalidade materna e outras complicações decorrentes da prática
abortiva são sofrimentos autoinfligidos.
Quem se submete a
procedimento manifestamente ilegal e que se sabe ser clandestino assume para si
o risco do que eventualmente possa ocorrer, não podendo o Estado ser
culpabilizado por tais consequências.
Violação
à integridade física e psíquica da mulher
O argumento é em suma o
mesmo só que dessa vez alegando que a mulher é penalizada em sua integridade
física e psíquica, por ser ela quem suportará as mudanças fisiológicas e a
renúncia, dedicação e comprometimento decorrentes da gravidez.
Quem utilizou a
fisiologia para conceber deve então usar a fisiologia para gestar, sob pena de
nos tornarmos uma sociedade puramente hedonista, egocêntrica e irresponsável.
Quem teve lucidez
psíquica para fazer livremente a escolha de ter conjunção carnal sem utilizar métodos
contraceptivos eficazes deve sim suportar a renúncia, a dedicação e o
comprometimento da gravidez.
E se é pra falar de
violação à integridade física e psíquica, a prática do aborto constitui
violência muito maior do que a gravidez.
Sob o aspecto físico, o aborto
pode gerar hemorragia profusa, perfuração uterina, retenção de restos de
placenta, seguida de infecção, peritonite, tétano e septicemia.
Do ponto de vista
psíquico, o aborto provoca: queda na autoestima pessoal pela destruição do próprio
filho, frigidez (perda do desejo sexual), aversão ao marido ou ao amante, culpabilidade
ou frustração de seu instinto materno, desordens nervosas, insônia, neuroses
diversas, doenças psicossomáticas, oscilações de ânimo, choro imotivado, medos,
pesadelos e depressões.
Psiquiatras já atestaram
que tais consequências não têm necessariamente a ver com padrões morais
religiosos, já que se reproduzem igualmente em mulheres ateias, agnósticas e
sem religião declarada.
Ao passo que eventual
legalização diminuiria os riscos do aspecto físico, apenas multiplicaria exponencialmente
os do aspecto psíquico.
Por esta perspectiva,
inverte-se o argumento, uma vez que o aborto ainda que com o consentimento da
gestante pode acarretar a ela danos maiores que a gravidez.
Pode ser clichê, mas o
ventre da mulher não foi feito pra ser túmulo, mas sim berço de vida.
Independente de outros
argumentos teleológicos, o ordenamento apenas admite a supressão da vida em respeito
a outros direitos em situações extremas como são os casos do aborto necessário,
do aborto em caso de estupro, do aborto de feto anencefálico, da legítima
defesa, do estado de necessidade ou dos crimes militares durante guerra
declarada.
Dito isso, é
juridicamente inadmissível dispor da vida em prol da integridade física e
psíquica, salvo em situações excepcionais.
A gravidez, embora enseje
alterações significativas no corpo e na psique da mulher, nem de longe se
compara à extirpação total da vida, que é o que ocorrerá com o feto em caso de
aborto.
Realizar uma
interpretação conforme a Constituição que permite o aborto até o 3º mês sem
qualquer outro requisito ou exigência é tratar de modo leviano aquilo que o
sistema jurídico trata com o maior rigor e seriedade.
É, na prática, fazer
substituir a carga valorativa que o ordenamento jurídico expressa como um todo,
a partir da análise conjunta de suas normas, pela carga valorativa subjetiva do
intérprete do texto.
Considerar que a
Constituição permite o aborto até o 3º mês é criar exceção à regra sem qualquer
base normativa, pois inexiste menção a este estágio da gravidez na Constituição
ou na lei.
Decidir sobre o sistema
jurídico sem base no sistema jurídico é decidir por arbítrio e vontade de
poder, constituindo verdadeiro ato de juristocracia ou de império da toga.
A
ausência de fundamento para a virada jurisprudencial
Para além disso, a
decisão do Ministro Barroso não cumpre o ônus argumentativo de explicar a
virada jurisprudencial.
Explicando...
Até o presente momento, o
Supremo Tribunal Federal vem decidindo reiteradamente pela constitucionalidade
dos referidos dispositivos.
Não houve alteração
normativa que ensejasse modificação substancial a ponto de inverter
diametralmente a interpretação dos dispositivos.
Ronald Dworkin explica
que os precedentes de um tribunal exercem força vinculante sobre os casos futuros,
na proporção em que casos semelhantes por força da isonomia requerem soluções
semelhantes.
Isso significa que para
promover uma mudança jurisprudencial desse nível o tribunal possui o ônus
argumentativo de demonstrar os elementos jurídicos que fundamentaram a mudança.
Tais elementos, por certo,
não existem.
Alguém poderia argumentar
que foi a mudança dos fatos que ensejou a virada jurisprudencial.
Tal argumento esbarra na
Teoria Geral do Direito Brasileiro que inadmite o costume contra legem e não reconhece a perda da validade pela inefetividade
de uma lei, cuja imperatividade permanece intacta até que seja revogada por
outra lei.
Ainda que
excepcionalmente possa haver uma mutação constitucional, tal expediente não
pode ser usado para reescrever o texto legal.
Isso porque o Judiciário
só pode atuar como Legislador Negativo, sob pena de violar a separação de
poderes (art. 2º da Constituição Federal).
Ora, os argumentos de Barroso
se levados ao pé da letra se aplicam a todo e qualquer feto ou embrião independente
da semana de gestação em que se encontre, o que significa que ou se mantém como
está ou se descriminaliza tudo.
Como inexiste menção em
qualquer texto sobre o limite do 3º mês, isto significa que tal elemento é
estranho à norma e foi incluído pelo julgador em claro exercício legislativo.
Isso é inaceitável e um
verdadeiro vilipêndio ao ordenamento jurídico travestido de interpretação.
Todos os pós-positivistas
sabem que texto e norma não são a mesma coisa, mas norma descolada do texto não
é Estado Democrático é Ditadura Judicial.
Violação
do direito à igualdade
Este argumento é um
contrassenso porque tenta tergiversar o que, de fato, se discute.
Há uma desigualdade
histórica entre homens e mulheres? Sim!
São necessárias medidas
de discriminação positiva para proteger as mulheres? Sim!
Isso justifica ceifar uma
vida? Não!
Provocar uma injustiça
para tentar compensar outra não faz o menor sentido, porque é supor que os fins
justificam os meios.
E se estamos falando de
igualdade, na qualidade de ser humano, o feto também se equipara à mulher
gestante ou ao médico da clínica, não havendo elemento de discrímen constitucionalmente aceitável que permita diferenciá-los
em termos de direito à vida.
Utilizar uma realidade
distópica como argumento como fez Ayres Brito pode até funcionar em uma obra
literária, mas em um texto técnico apenas desvia o foco do que realmente se discute.
O princípio da isonomia
como direito da mulher se opõe ao homem e não ao nascituro que é quem está, de
fato, em julgamento aqui.
Acesso
das mulheres pobres ao sistema público
A base desde argumento é
que as pessoas praticarão o aborto, não obstante a existência de vedação legal.
Pauta-se na ideia de
adequação social em detrimento da lei.
Dworkin ao falar sobre
validade das normas jurídicas explica que existem dois tipos de moralidade: a
moralidade convencional e a concorrente.
Na moralidade
convencional, a norma se baseia no acordo social, ou seja, depende daquilo que
se pratica.
Na moralidade
concorrente, embora a maioria concorde com a existência da norma, ela não se
fundamenta na prática social.
O Direito se alinha a
essa segunda espécie de moralidade.
Explicando...
Se aplicarmos a
moralidade convencional ao Direito, passaremos a permitir o homicídio, a
institucionalizar a corrupção e a incentivar o furto.
Tais prática, embora vedadas
pelo ordenamento, são diuturnamente praticadas e nem por isso o art. 121 do
Código Penal perdeu sua validade e nem por isso estamos discutindo ampliar as
hipóteses em que o furto é possível ou buscando legitimar a corrupção porque
ela acontecerá assim mesmo apesar da proibição.
Este argumento beira as
raias da insanidade ao tergiversar mais uma vez utilizando o princípio da
igualdade.
O argumento aponta que os
ricos têm mais recursos para violar o sistema jurídico e sair impunes.
Isso é um fato notório em
se tratando de qualquer infração, seja ela penal ou não.
E isso não justifica a
descriminalização do aborto, porque a igualdade é oponível pelo pobre em
relação ao rico, mas não em relação ao nascituro.
Inclusive quando se fala
em assegurar uma isonomia substancial protege-se o mais fraco em relação ao
mais forte, ou seja, tutela-se o vulnerável.
Nessa hipótese, o mais
vulnerável certamente é o nascituro que precisa ser protegido em face de toda a
sociedade.
Outra base desse
argumento é de cunho estritamente utilitarista, porque entende que a permissão
do aborto trará maior felicidade coletiva ou um melhor custo-benefício social.
A falha do raciocínio
utilitarista é porque nega exatamente o imperativo categórico kantiano ao
instrumentalizar o nascituro atingindo-lhe a vida e a dignidade.
Dworkin também ensina que
políticas e princípios são coisas diferentes.
Políticas são objetivos
de maximização dos benefícios da sociedade como um todo e princípios,
parafraseando Alexy, são comandos de otimização do sistema jurídico (verdadeiras
normas fundamentais com baixa densidade semântica que se diferenciam das regras
sobretudo por sua dimensão de peso).
Decidir que é melhor
descriminalizar o aborto porque é uma questão de saúde pública das mulheres
pobres, favorecendo a sociedade como um todo, é decidir por política e não por
princípio.
Na prática é decidir à
margem do Direito.
Quanto aos pobres, o
governo já fornece cartilhas, palestras e contraceptivos gratuitamente nas
unidades básicas de saúde.
Além disso, existe
jornal, televisão, internet e boca
pra perguntar, então não dá pra esperar que alguém queira se escusar de cumprir
a lei alegando não conhecê-la.
O homem médio (pessoa
comum, de entendimento mediano) sabe que fazer sexo pode gerar gravidez e que
abortar é ilegal, então não adianta tentar passar nenhum discurso de coitadismo
(a falácia da misericórdia como diria Juarez de Freitas).
Tem muita gente enchendo
a casa de crianças por simples irresponsabilidade.
É preciso levar os
direitos à sério!
Desproporcionalidade
da criminalização
A proporcionalidade é um
método de ponderação utilizado para solucionar a colisão de direitos
fundamentais, cuja natureza é reconhecidamente principiológica.
I
– Adequação
Para embasar seu raciocínio
de adequação Barroso traz ao processo um único estudo que supostamente conclui
pela irrelevância da legalização no número de abortos praticados.
Em primeiro lugar, o
estudo é único e foi elaborado em um contexto europeu, embora tenha analisado dados
de vários países.
A meu ver um único estudo
não é o bastante para concluir pela inadequação do crime de aborto, ainda mais
se ele não tiver sido realizado tendo em vista a realidade própria da América Latina,
que é bem diferente do resto do mundo.
Não há precisão suficiente
por conta de eventuais cifras ocultas e possíveis falhas de metodologia, sendo
necessário um amplo debate em cima desse ponto.
Em segundo lugar, essa
conclusão contraria a lógica básica segundo a qual a permissão de uma conduta
outrora proibida certamente aumentará sua prática.
Em terceiro lugar, se a
existência de tipo penal incriminador não está conseguindo desestimular as
taxas de aborto a conclusão é exatamente a oposta: em vez de descriminalizar é
necessário recrudescer as penas para quem pratica tal ilícito, tendo em vista a
vedação à proteção insuficiente do direito fundamental à vida.
É preciso considerar a
ineficiência de nossa Justiça Criminal que deixa impune inúmeros criminosos
todos os anos e o fato de que o crime de aborto é apenas de médio potencial
ofensivo, possibilitando benefícios penais, conforme as circunstâncias.
Esses fatores reduzem o
caráter intimidador do tipo penal e referida inadequação, se existir, pode ter
origem em outros fatores de ordem pragmática.
Por isso, uma análise que
conclua pela ausência de adequação considerando apenas números artificias sem
confrontá-los com a realidade prática do Brasil é rasa e temerária.
Em quarto lugar, a
pretensa neutralidade estatal proposta por Barroso é fantasiosa e não passa de
uma clara demonstração de sua incapacidade de abrir mão dos próprios valores
para julgar conforme os valores já sedimentados no ordenamento jurídico.
Embora a moralidade judaico-cristã
tenha influído diretamente na construção de nossa base normativa, a ilicitude
do aborto não se lastreia em convicções religiosas, mas em princípios jurídicos
que se espraiam por todo o sistema como alhures demonstrado.
II
– Necessidade
Barroso afirma que a criminalização
é desnecessária porque outros métodos menos gravosos à mulher poderiam ser
utilizados para resguardar a vida do nascituro.
O posicionamento do ministro
desconsidera a relevância que o ordenamento confere ao direito à vida.
Uma simples lida no
Código Penal leva à conclusão de que a vida é bem jurídico de relevância ímpar
e para sua proteção o legislador invariavelmente utiliza o sistema penal repressivo
com ameaças de perda da liberdade.
Métodos como educação
sexual, programas de planejamento familiar, apoio à gestante e à família e distribuição
de contraceptivos certamente são eficientes, mas sozinhos não constituem uma
base forte o bastante para proteger a vida.
Se o homicídio deixasse
de ser crime, a melhoria na educação nas escolas não seria instrumento de
proteção suficiente para a vida, apesar de sua inegável capacidade de
desestimular a prática criminosa.
Os elementos
criminogênicos são inúmeros e supor que essas medidas extrapenais seriam
suficientes para resguardar os nascituros é ingenuidade.
O ideal é combinar de
modo eficiente ambas as iniciativas, penais e extrapenais.
Ao enunciar as principais
causas invocadas para abortar: a impossibilidade de custear a criação dos
filhos e a drástica mudança na vida da mãe, Barroso corrobora minha tese.
Pessoas que querem
abortar se movem por sua irresponsabilidade e por sua conveniência.
Uns alegam pensar no futuro
da criança e alegando isso roubam qualquer chance que ela teria de futuro e
outros ainda mais mesquinhos trocariam prontamente a vida de uma criança por
uma realização profissional ou uma comodidade.
Dito isso, tem-se que a
repressão penal se faz extremamente necessária no contexto brasileiro.
III
– Proporcionalidade em sentido estrito
O discurso do ministro é
pífio.
Se você criminaliza o
aborto e obriga a gestante a levar a gravidez até o fim, por certo, vários
direitos da mulher são mitigados, mas ainda que fragilizados eles continuarão
lá.
Se, porém, o aborto for
admitido, privilegia-se os direitos da mulher, mas o nascituro perde todos os
seus que são sustentados pela única coisa que ele possui e que independe do
nascimento: a vida.
Exemplificativamente, se
eu tenho 5 direitos e outra pessoa só tem 1, sendo que este um é a única
esperança dela de conseguir os demais, tem-se que é injusto privilegiar os meus
5 direitos e retirar do outro o único que possui.
Ante o exposto,
conclui-se que o crime de aborto é proporcional em sentido estrito.
Tratamento
dado por outros países
Para responder a este
argumento reproduzo uma conversa que tive com a minha mãe na adolescência
várias vezes:
- Mamãe, quero sair com
os meus amigos pra tal lugar.
- Você não vai.
- Mas mamãe, todo mundo
vai.
- Você não é todo mundo
Em outras palavras, lá é
lá e aqui é aqui.
As normas de Direito
Estrangeiro (ou alienígena como falamos no Direito) não são vinculantes e
servem apenas para comparação, ou seja, este argumento é de ordem filosófica.
Como foi exaustivamente
demonstrado, nosso ordenamento jurídico protege o nascituro e só permite que
lhe seja retirada a vida em hipóteses restritas e previamente enumeradas.
A tentativa do ministro
de taxar os costumes do povo brasileiro de retrógrados é apenas mais uma
demonstração do solipsismo que reina no Judiciário brasileiro.
Afinal de contas, é
melhor infamar os costumes do seu próprio povo e negar os valores sedimentados
na Constituição do que abrir mão das próprias ideologias para decidir de forma
técnica.
Autolimitação
do Judiciário e proselitismo
Para finalizar este texto,
acho interessante destacar que o impetrante do Habeas Corpus sequer mencionou tais fundamentos, pois sua ideia era
apenas demonstrar a evidente inexistência de preenchimento dos requisitos da
prisão preventiva.
É curioso que o ministro mesmo
já tendo fundamentos suficientes para dar a ordem de liberdade de ofício não o
fez, mas preferiu se aventurar em uma aventura argumentativa de um tema
tormentoso em sede de controle difuso.
O fez mesmo sabendo que o
Habeas Corpus não permite dilação probatória (espaço para produção de provas) e
tem um rito célere.
Não posso afirmar, mas
isso fede a proselitismo e patrocínio de interesses políticos e bandeiras
pessoais no exercício da judicatura.
Isso não apenas esmaece o
brilho da nobre e árdua profissão de juiz, mas atenta contra a imagem do Judiciário
e contra a técnica jurídica.
Felizmente, o Legislativo
parece ter acordado e dá sinais de que vai agir.
Acordemos também
profissionais do Direito, antes que os livros que lemos deixem de ser sobre
normas e passem a tratar dos gostos pessoais de cada magistrado.
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