segunda-feira, 4 de setembro de 2017

Se aplica a Lei Maria da Penha em favor de uma “mulher que virou homem” agredida por um “homem que virou mulher”?



Olá, JusAmiguinhos! Tudo bem? Em tempos de banheiro unissex, de vagão feminino exclusivo, ejaculação no BRT, meninos vestindo saias na escola e por aí vai temos que convir que o mundo está uma loucura e os juristas estão encontrando dificuldades para dar respostas às diversas situações que se apresentam.

Recentemente um amigo me enviou no WhatsApp um caso como o descrito no título e perguntou qual seria minha opinião.

Não sei se a notícia é verídica, mas a discussão é de extrema importância.

Inicialmente, acho importante destacar que embora eu seja conservador, o que acaba me pondo à direita na discussão política, isso não quer dizer em absoluto que o meu discurso seja contrário aos direitos humanos, em especial pelo fato de que também sou conservador no plano jurídico, na medida em que busco conservar as conquistas sociais e democráticas trazidas pela Constituição Federal de 1988.

Dito isso, passo a fazer uma análise técnica da questão proposta com as seguintes ressalvas: I) Não sou especialista no assunto, então não tenho a pretensão e nem me julgo capaz de dar uma solução definitiva e II) Não existem soluções simples para problemas complexos.

O que diz o texto da Lei?

Não vejo outro lugar de onde partir senão do texto da própria Lei Maria da Penha que diz:

Art. 1o  Esta Lei cria mecanismos para coibir e prevenir a violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do § 8o do art. 226 da Constituição Federal, da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Violência contra a Mulher, da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher e de outros tratados internacionais ratificados pela República Federativa do Brasil; dispõe sobre a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher; e estabelece medidas de assistência e proteção às mulheres em situação de violência doméstica e familiar.

Isso significa que a aplicação desta lei se cinge a dois elementos: o conceito de violência doméstica e familiar e o conceito de mulher.

Não vou entrar na discussão sobre a violência doméstica e familiar, pois vou tomá-la como pressuposto no caso ora discutido.

Isto é, entende-se que havia uma relação de parentesco ou convivência doméstica entre o agressor e a vítima.

É bem verdade que ao editar a Lei Maria da Penha o legislador poderia ter ampliado ainda mais a proteção da violência contra a mulher em razão do gênero, a qual ocorre não apenas no âmbito do lar, mas também em diversas outras situações, como no emprego e na faculdade.

Contudo, o intérprete não pode descolar o sentido do texto a pretexto de reescrevê-lo conforme suas preferências sob pena de violar a soberania democrática das leis produzidas, discutidas e votadas no Parlamento.

Assim mesmo que eu entenda que seria justo aplicar a lei nessas situações, devo me restringir aos limites semânticos do Direito posto, sob pena de violar a Separação de Poderes e romper a ordem constitucional.

O conceito de mulher vai encontrar uma grande confusão teórica decorrente da cisão da ideia de sexo e gênero, sendo o primeiro uma pré-determinação biológica e o segundo uma construção social.

Conservadores cristãos como eu entendem que o gênero além de uma construção social é também uma pré-determinação de ordem espiritual, mas isso é irrelevante para a aferição de sentido do que diz a lei.

Certo é que são esses dois elementos, o fator biológico e o fator social, que justificam a existência de uma lei que promove discriminação e em minha compreensão são eles que definem o que é ser mulher.

Entenda o que é discriminação positiva

O art. 5º da Constituição Federal assegura que todos são iguais perante a lei, ou seja, existe uma igualdade formal perante o ordenamento que exclui privação de direitos por conta de distinções de qualquer natureza.

Porém a lei não pode conformar o mundo material, de modo que a igualdade formal juridicamente garantida não vai fazer com que homens e mulheres sejam materialmente iguais, ou deficientes e não deficientes, crianças e idosos...

Diante de um quadro de desigualdade material o ordenamento jurídico precisa se adequar no sentido de desigualar para igualar, ou seja, identifica-se o grupo vulnerável e se legisla com o objetivo de conferir uma proteção extra a esse grupo em face dessa vulnerabilidade.

Isso justifica a existência de leis como o Estatuto da Criança e do Adolescentes, o Estatuto do Idoso, a Lei de Cotas e a Lei Maria da Penha.

A Lei Maria da Penha vem atender essa vulnerabilidade da mulher em relação ao homem que se dá a meu ver por dois fatores: biológico e social.

Biológico porque não obstante os organismos masculino e feminino sejam similares via de regra a compleição física do homem é mais robusta, o que lhe confere maior força, agilidade, velocidade.

Tanto é que se convencionou separar a maioria das modalidades esportivas por sexo.

É claro que existem mulheres mais fortes, resistentes e rápidas que muitos homens, mas a lei como um mandado de natureza genérica e abstrata visa contemplar a maioria das situações.

O fator social tem a ver com as discriminações e vulnerabilidades decorrentes do papel secundário ou subalterno que socialmente é conferido à mulher, tais como subsalários, jornada dupla (em casa e na rua), dependência econômica exclusiva do parceiro, dentre outras.

A meu juízo são esses dois elementos que justificam a discriminação/discrímen, como diria Celso Antônio Bandeira de Melo, e é com base neles que se deve decidir pela aplicação ou não aplicação da Lei Maria da Penha.

Como fica a questão dos transgêneros?

Essas pessoas mencionadas no título são transgêneros, ou seja, pessoas que por não sentir identificação entre seu gênero e seu sexo decidiram promover uma intervenção cirúrgica/hormonal em seus corpos (além da aparência exterior que é o primeiro passo).

Eu não saberia dizer no caso concreto, porém alguns transgêneros não fazem a “transição completa” e acabam como algo intermediário.

Inclusive é uma pretensão política deste grupo romper com a noção binária de gênero que hoje ainda vige em nossa sociedade.

Como conservador cristão, eu tenho tal pretensão como um grande absurdo por confundir tolerância com concordância a consubstanciar uma ditadura da minoria, mas isso não vem ao caso.

Sob o aspecto social o fato de alguém tornar-se transgênero o retira da noção social que historicamente se atribui a mulher.

No caso do homem que vira mulher, a sociedade não o vê como mulher e no caso da mulher que vira homem o mesmo ocorre.

Independentemente de você leitor entender que é preconceito ou não essa é uma conclusão fática: o transgênero sai de um papel social construído a priori (homem ou mulher) e se insere em uma nova categoria que tem suas próprias questões e vulnerabilidades.

Como ambos se encontram incluídos nessa mesma categoria e, portanto, são socialmente vulneráveis de modo equitativo, entendo que o fator social deixa de ser um elemento de discriminação válido nessa hipótese.

Certo que é que a despeito das intervenções cirúrgicas o homem continuará com compleição física masculina, isto é, estatura, força, agilidade e a mulher também.

Por isso, não obstante as alterações promovidas pela mudança de sexo, o fator biológico permanece presente.

Assim, entendo que se aplica a Lei Maria da Penha para proteger a mulher que virou homem contra a agressão do homem que virou mulher.

O mesmo não ocorreria se fosse o inverso pela ausência do fator biológico.

Como fica a questão dos homossexuais?

Em relação às lésbicas, o fator biológico é irrelevante porque ambas têm o mesmo sexo, mas caso seja verificada no caso concreto vulnerabilidade social, decorrente do papel ocupado pela mulher dentro daquela estrutura familiar, seria então possível aplicar a lei.

No que tange aos gays (homossexuais masculinos) entendo não ser aplicável a lei, justamente porque o conceito de mulher leva em consideração os fatores biológico e social, de modo que ainda que um dos dois julgue ocupar um papel semelhante ao da mulher a compleição física jamais se amoldará ao que justifica a existência da lei.

Em outras palavras, mesmo que os homossexuais se vejam como mulheres ou outra definição intermediaria de gênero a questão biológica é insuperável.

Como fica a questão dos homens agredidos?

Se é possível levantar algumas objeções no que diz respeito aos homossexuais e lésbicas, aqui me parece muito claro não ser possível a aplicação da lei.

Isto porque a Lei Maria da Penha significa proteção extra e não proteção exclusiva, ou seja, existem leis que proíbem a agressão de homens e permitem a tomada de medidas semelhantes tais como o afastamento do lar.

Para isso o homem terá apenas que se utilizar das vias ordinárias, comparecer à delegacia, registrar BO por lesão corporal, nos termos do Código Penal ou ajuizar uma ação cível na Justiça Comum.

Em outras palavras, a existência da Lei Maria da Penha não desprotege o homem, apenas confere maior proteção à mulher.

Por isso, negar a aplicação dessa lei para proteger os homens não caracteriza uma espécie de discriminação inversa, mas sim a garantia da igualdade material que ela visa promover no seio da sociedade brasileira.

Por fim, cabe ressaltar que no caso concreto competirá a cada participante da relação jurídica-judicial trabalhar no sentido de impedir que a discriminação positiva se torne um privilégio odioso, na medida em que comece a comprometer a ampla defesa, o contraditório ou outras garantias constitucionais.

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